Natália Mori Cruz
Socióloga e assessora parlamentar do CFEMEA

Debate sobre trabalho doméstico promete ser quente em 2005

Para começar o ano queremos refletir sobre um tema que deve ocupar a atençãodos debates no Congresso Nacional em 2005, de acordo com o andamento dasdiscussões do ano passado. Trata-se do emprego doméstico. No final de 2004, aCâmara dos Deputados decidiu constituir uma Comissão Especial sobre Trabalho eEmprego Doméstico, que deve começar a funcionar no começo deste ano. @sparlamentares pretendem analisar todos os mais de 30 projetos de lei e emendasconstitucionais que contêm novos direitos para as trabalhadoras domésticas(falamos no feminino, pois a categoria é composta 93% de mulheres, sendo mais de60% negras).

Este tema é uma prioridade não somente para o movimento das trabalhadorasdomésticas, mas também dos movimentos de mulheres negras e feministas que vêemna discussão a possibilidade de desmascarar a tripla discriminação que ele traz:de classe, de raça e de gênero. Nesse contexto, apontam as decorrências dopatriarcalismo e do escravismo na constituição de uma divisão sexual e racial dotrabalho extremamente excludente e desigual.

Aníbal Quijano1 aponta a divisão racial como umdos elementos estruturantes da desigualdade na América Latina. É o frutopersistente do processo de colonização. A noção de inferioridade racialconstruída pelos colonizadores, explicou naquela época e sustenta ainda hoje, adesvalorização do trabalho realizado pela população negra e indígena. Eleargumenta que as formas de exploração do capitalismo colonial associaram otrabalho assalariado à branquitude, que é o padrão de trabalho que conferedignidade e produz direitos a quem o exerce.

Ao articularmos a estes elementos da divisão racial do trabalho, aqueles queoperam em termos da divisão sexual do trabalho, ou seja, que relegam às mulheresa responsabilidade quase que exclusiva pelo trabalho doméstico e de cuidado coma família, então podemos compreender melhor os mecanismos que estão em plenofuncionamento para desvalorizar, invisibilizar e negar direitos às trabalhadorasdomésticas.

Acreditamos que a desvalorização da atividade profissional do trabalhodoméstico está diretamente relacionada a quem o realiza (mulheres, na maioriadas vezes negras), e ao tipo de trabalho que se faz (doméstico). Porque, comoassinala a feminista Betânia Ávila2, o tempodispendido pelas mulheres com a reprodução da vida, com o cuidado de pessoas quenão podem se auto-cuidar (idos@s, crianças, doentes, pessoas com deficiência),com ações essenciais para a própria manutenção das atividades produtivas comoeducação, vestimenta, alimentação, saúde e abrigo não é contabilizado comoválido para a organização social do trabalho, tempo este fruto da expropriaçãodo trabalho das mulheres.

Dessa forma, a construção do tempo que é validada pelo sistema capitalista éo tempo empregado para as atividades da produção, aquele gerador de mais valia(com jornadas de trabalho definidas e tempo de lazer contado como parte do tempoque sobra das atividades de produção).

Diante de todos os elementos apontados, podemos ter uma melhor compreensãodos padrões de desigualdades que configuram o trabalho doméstico: seja otrabalho da reprodução, do cuidado ou do emprego doméstico. Por isso, adiscussão sobre o tema é essencial para a conquista de relações trabalhistasmais equânimes e igualitárias entre mulheres e homens, negras e negros.

Como se pode constatar, o problema é complexo e debatê-lo com @sparlamentares, elaborando alternativas e apresentando propostas legais e depolíticas públicas não vai ser tarefa simples. Isso porque as leis e aspolíticas públicas, em vez de desvalorizar, precisam jogar um papel favorável àafirmação da dignidade, à visibilização e valorização do trabalho doméstico,inclusive garantindo às mulheres que estão neste mercado de trabalho a igualdadede direitos com @s demais trabalhador@s.

É crucial, portanto, o empenho político dos vários movimentos de mulherespara aprofundar argumentos e mobilizar a sociedade, buscando romper os estreitoslimites que nos colocam a dupla divisão - sexual e racial do trabalho. Nestesentido, há alguns sinais alvissareiros: é certo que as organizações dastrabalhadoras domésticas estarão mobilizadas e participando ativamente dadiscussão na Câmara dos Deputados. A Articulação de Mulheres Brasileiras, porsua vez, planeja um ciclo de debates, em abril próximo, sobre a organização dotempo social e a divisão sexual do trabalho. Também está em plena atividade umNúcleo de Reflexão Feminista sobre o Mundo do Trabalho Produtivo e Reprodutivo(articulação entre feministas de instituições sindicais, do movimento social edas universidades para a produção de conhecimento e debate/ação política entreesses três campos institucionais). Essas e tantas outras energias prometemaquecer o debate sobre a questão e produzir mudanças.

(1) Citado por Guacira César de Oliveira, em: "Desigualdades deGênero e Raça no Desenvolvimento Brasileiro". Trabalho final para obtenção dograu de mestra na Universidad del País Vasco, Espanha, 2004. Página 6.

(2) "O Tempo e o Trabalho das Mulheres", em: Um Debate Críticoa partir do Feminismo - reestruturação produtiva, reprodução e gênero. SãoPaulo: CUT, 2002. Páginas 37 e 38.


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