Natalia Mori Cruz
Socióloga e assessora parlamentar do CFEMEA
Guacira César de Oliveira
Socióloga, assessora técnica e diretora colegiada do CFEMEA

Apesar da insistência de feministas negras sobre a necessidade de alargarmos o conceito de violência de gênero e incorporarmos a violência racista como uma dimensão da primeira, pouco se tem problematizado sobre o assunto. Falar sobre violência também significa extrapolar os sentidos, incluindo não só a violência física e sexual, mas também psicológica, moral, patrimonial e simbólica.

Uma expressão evidente da violência simbólica é a ausência de dados e indicadores que permitam o monitoramento dos programas e ações governamentais desde as perspectivas de gênero e raça. O fato de que políticas públicas continuem sendo desenvolvidas e avaliadas desconsiderando estes elementos parece ser uma forma de silenciar a insistente permanência dos diferenciais sociais e econômicos que separam a população branca da população negra, as mulheres dos homens, as pessoas sujeitas a múltiplas formas de discriminação daquelas que estão bem enquadradas ao padrão (branco, masculino, heterossexual, adulto).

Salvo raríssimas exceções, os mais de 350 programas de políticas públicas que constituem o Plano Plurianual 2004-2007, em nível federal, não estabelecem metas quantitativas e/ou qualitativas para superar as desigualdades de gênero e étnico-racias, tampouco definem instrumentos de monitoramento destes aspectos. Um exemplo: na administração pública, não se sabe o quanto é mais difícil para uma mulher negra do que para um homem branco, chegar a gozar do seu direito à aposentadoria depois de 35 anos de trabalho, porque não há dados desagregados por raça na previdência. Tampouco se conhece os impactos das mudanças no sistema previdenciário sobre o acesso das mulheres negras a tal benefício. A impossibilidade de conhecer e avaliar os impactos das políticas públicas sobre as desigualdades de gênero e raça impossibilita a definição de estratégias e a correção de rumos, ao mesmo tempo em que permite a manutenção das inequidades.

Até mesmo sobre o resultado das recentes eleições municipais, ninguém sabe dizer em que medida se avançou ou se retrocedeu em termos da participação da população afrodescendente nos espaços da democracia representantiva. Não há informação sobre quant@s negr@s exerciam mandatos representativos no sistema político, quant@s se candidataram neste pleito, nem quant@s se elegeram.

Este silenciamento quanto aos dados, indicadores e metas para enfrentar as desigualdades de gênero e raça e, especialmente, a articulação entre ambas, pode ser interpretado como um ato de violação dos direitos humanos, pois desconsidera, no desenvolvimento das políticas públicas, as demandas por direitos humanos, econômicos, sociais e culturais da maioria da população brasileira.

E por falar em violação dos direitos, problematizemos outra forma de violência. As feministas sempre denunciaram a violência contra as mulheres como uma decorrência do patriarcado. A isso, acrescentamos outro sistema ideológico, político e econômico, tão perverso quanto o patriarcalismo e que também fundou a construção da sociedade brasileira: o racismo. Desta forma, a violência racista também se configura como uma relação de poder, qual seja, a dominação d@s branc@s sobre @s negr@s. Diante disso, será possível pensarmos na violência contra as mulheres sem considerar a violência racista?

Como diz Sueli Carneiro1, o estupro colonial praticado pelos homens brancos desde a época da colônia contra negras e indígenas ainda hoje perpetua a imagem da mulata disponível, submissa e dócil. A história violenta do patriarcado e do escravismo se desemboca em outras situações de violência contra as mulheres negras como o turismo sexual e o tráfico de mulheres, além da violência psicológica, do abuso sexual e da privação.

Outra vez a história se repete e a ausência da análise racial no tema da violência invisibiliza as especificidades acometidas contra as mulheres negras. Sobre o turismo sexual, por exemplo, grande parte das mulheres envolvidas são negras e 60 % dessas mulheres têm entre 13 e 16 anos. Estudiosas da temática falam da pouca expectativa das meninas, em sua maioria pobres e vítimas de abuso sexual, com relação ao mundo do trabalho que as aguarda (como possíveis domésticas, com baixos salários e também à mercê do abuso sexual dos patrões - sejam "iniciando" jovens ou satisfazendo os mais velhos) e a preferência por um estilo de vida que mesmo correndo riscos de maus tratos e de violência são preferidos, pois encontram a possibilidade de ganhos materiais e simbólicos (vida no exterior) maiores.

Sabemos, também, que muitas vezes o turismo sexual é uma porta de entrada ao tráfico de mulheres e que o Congresso Nacional acaba de propor nova legislação alterando a terminologia do tráfico de mulheres para tráfico de seres humanos, resta saber se noss@s parlamentares estão sensíveis para o enfrentamento desta violência cometida contra as jovens mulheres negras e quando o poder público irá reconhecer esta tão séria questão que viola os direitos humanos das mulheres negras.

A articulação da dominação do poder masculino sobre as mulheres com a quase eliminação de qualquer possibilidade de cidadania para a população negra e indígena ainda hoje perpetua desigualdades e discriminações. O compromisso de cidadãos e cidadãs branc@s e não-branc@s com a igualdade é fundamental para transformar esta situação e exigir do Poder Público uma atuação no sentido do bem comum, e contra a manutenção de privilégios raciais ou de gênero.

(1) Sueli Carneiro. "Mulheres Negras, Violência e Pobreza". Em: Diálogos sobre Violência Doméstica e de Gênero: construindo políticas públicas. Programa de prevenção, assistência e Combate à Violência Contra a Mulher, 2003, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, Brasília.


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