Desde julho, medicamentos são oferecidos sem custo a 55 milhões de brasileiras cadastradas no Bolsa Família. Para especialistas, medida rompe cadeia de desigualdades e contribui para autonomia reprodutiva e financeira das mulheres

Por Mariana Gonzalez, em colaboração com Marie Claire — São Paulo

 

 

Distribuição gratuita de anticoncepcionais a cadastradas do Bolsa Família pode impactar números de aborto inseguro no Brasil — Foto: Getty Images

Distribuição gratuita de anticoncepcionais a cadastradas do Bolsa Família pode impactar números de aborto inseguro no Brasil — Foto: Getty Images

Ao anunciar a retomada do programa Farmácia Popular, o presidente Lula e a ministra da Saúde, Nísia Trindade, comunicaram também que, a partir de julho, a distribuição gratuita de medicamentos seria estendida a todos os beneficiários do Bolsa Família. A lista de 40 remédios incluídos no programa são usados para tratar doenças como asma, diabetes, hipertensão e osteoporose, mas um dos grandes méritos do programa é a inclusão de anticoncepcionais – são quatro medicamentos diferentes, entre pílulas e injetáveis – oferecidos sem custo para cadastradas no Bolsa Família.

Especialistas ouvidas por Marie Claire acreditam que a medida traz uma série de benefícios para as mulheres brasileiras, especialmente as negras e pobres: primeiro, reduzindo o número de gestações indesejadas e de risco, e de abortos espontâneos ou provocados, que podem levar à mortalidade materna; depois, garantindo a elas maior autonomia reprodutiva e financeira.

A médica Melania Amorim, uma das fundadoras da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, chama atenção para o alto número de gestações indesejadas no país – duas em cada três, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, feita em 2021, o que consequentemente leva a abortos clandestinos. “Fornecer métodos contraceptivos de alta efetividade é uma boa estratégia para romper este ciclo, que prejudica ainda mais as mulheres negras e pobres”, argumenta.

“Sabemos o quanto mulheres em contexto de pobreza têm dificuldade em acessar métodos contraceptivos. Boa parte dos recursos delas –inclusive parte do valor do Bolsa Família– fica comprometido com a compra desse medicamento, que é de uso contínuo e, portanto, de custo mensal”, destaca Emanuelle Góes, pesquisadora da Fiocruz da Bahia com estudos sobre saúde reprodutiva, gravidez na adolescência e desigualdades raciais na maternidade. A medida, portanto, “alcança mulheres que querem ter condições de comprar comida e planejar sua reprodução com tranquilidade”.

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O Farmácia Popular, lançado inicialmente em 2004, no primeiro governo Lula, estabelece parceria com farmácias da rede privada para ampliar a distribuição de medicamentos à população para além das Unidades Básicas de Saúde e farmácias municipais. Agora, com a retomada anunciada em junho após oito anos sem novas farmácias credenciadas, a expectativa do governo federal é que o programa alcance, até o fim deste ano, 93% do território nacional.

O projeto de Orçamento para 2023 enviado ao Congresso pelo governo Bolsonaro e aprovado pelos parlamentares reduziu em 60% os recursos do programa Farmácia Popular –mas, segundo o Ministério da Saúde, o corte não impediu a retomada e ampliação do programa graças à PEC da Transição (Proposta de Emenda à Constituição 26/2022). A aprovação da medida permitiu a expansão das despesas do Ministério da Saúde em R$ 22 bilhões, dos quais, mais de R$ 1 bilhão serão destinados à reestruturação dos serviços de saúde.

“Reconstruir o Farmácia Popular é prioridade do Governo Federal, que garantiu a continuidade da iniciativa com recursos da PEC da Transição, após o desmonte orçamentário na gestão passada. O orçamento previsto para 2023 está na ordem de R$ 3 bilhões”, disse a pasta, em nota enviada à Marie Claire.

 

Menos desigualdade, mais autonomia

 

“Há quem diga que só engravida quem quer. Mas isso não é verdade”, explica a médica Melania Amorim. “Métodos contraceptivos, além de não serem acessíveis, também podem falhar”.

Na visão das duas profissionais de saúde, a distribuição gratuita de anticoncepcionais rompe uma série de problemas que aprofundam a vulnerabilidade de uma parcela importante das mulheres brasileiras.

Ao evitar uma gravidez indesejada, essas mulheres deixam de se submeter a abortos clandestinos que podem levá-las à morte. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto de 2021, uma a cada sete mulheres de até 40 anos já interrompeu uma gravidez intencionalmente; metade delas antes dos 19 anos.

Prova de que métodos contraceptivos podem incidir diretamente na redução do número de abortos provocados, o levantamento mostrou queda no número de procedimentos em relação às duas pesquisas anteriores, em 2010 e 2016, e concluiu que essa baixa pode ser explicada justamente pelo uso crescente de métodos contraceptivos reversíveis na América Latina e no Caribe. Ou, ainda, quando essas mulheres levam adiante uma gravidez que não estava nos planos, têm a vida financeira prejudicada, seja porque se veem obrigadas a deixar os estudos, seja porque, com filhos, têm mais despesas e maior dificuldade para conseguir bons empregos.

Emanuelle Góes, que trabalhou durante alguns anos com saúde reprodutiva no Sistema Único de Saúde, conta que, na prática, mesmo em lugares em que havia acesso a métodos contraceptivos antes do novo Farmácia Popular, essa oferta não era contínua. Ou seja, as mulheres tinham pílula para um mês, mas não tinham para o mês seguinte.

“Isso gera insegurança e gravidez não pretendida. Mas, a partir do momento em que uma política de Estado garante esse acesso gratuito e continuado, garante a autonomia dessas mulheres”, percebe a pesquisadora.

 

Só pílula não basta

 

Para retirar os anticoncepcionais, basta ir a uma farmácia credenciada e apresentar a receita médica e um documento de identidade. Com o número do CPF, o sistema confirma o vínculo com o Bolsa Família e o medicamento é liberado.

Mas, “quando falamos em saúde reprodutiva, não estamos falando apenas de ir ao balcão e pegar a pílula”, pondera Emanuelle Góes. “As pessoas precisam de outros serviços, como acesso à informação, prevenção de doenças, promoção de saúde”.

Embora a ginecologista e a pesquisadora concordem com a importância da medida, as duas também estão de acordo que, isoladamente, a medida não é suficiente para uma política bem-sucedida de planejamento reprodutivo.

Para elas, também são necessárias campanhas de informação sobre o uso dos anticoncepcionais e prevenção de ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), e especialmente de educação sexual de qualidade nas escolas. Além disso, ampliar a distribuição de camisinhas nas farmácias populares, inclusive de camisinhas femininas –atualmente, são distribuídas apenas em postos de saúde e é difícil achar as femininas à disposição.

 

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