Quase lá: Pochmann: O que fazer diante da informalidade?

 

44% da população trabalhadora está na economia popular e de subsistência. Contaminado pelo rentismo, o Estado limitou-se a oferecer paliativos. É hora de outra postura: políticas que garantam o direito ao trabalho e reconheçam sua diversidade


Fernando Frazão/Agência Brasil

 

Por sua tardia trajetória constitutiva, o capitalismo no Brasil apresentou especificidade e sentido distintos nas últimas 13 décadas. Dois movimentos históricos estruturais, em especial, podem ser brevemente destacados.

O primeiro refere-se ao processo de modernização da estrutura produtiva vigente entre as décadas de 1890 e 1980. Por conta deste processo, foi possível emergir uma sociedade urbana de classes diferente e superior ao agrarismo mercantil-escravista prevalecente durante o período imperial (1822-1889).

O segundo movimento estrutural do capitalismo no Brasil é o que se encontra em curso desde os anos 1990, produzindo uma sociedade desclassada, destroçada pelo aniquilamento da burguesia industrial e do operariado e classe média assalariada. Ademais da perda de vitalidade econômica, combinada com o desmonte da estrutura produtiva complexa, diversificada e integrada, assiste-se ao processo de desmodernização capitalista e ao declínio nacional.

Se, durante o Império, a renda nacional dividida por seus habitantes crescia apenas 0,3% como média anual, as primeiras dez décadas de contínua modernização capitalista possibilitaram que o Produto Interno Bruto per capita aumentasse ao ritmo médio anual de 2,2% (7,3 vezes superior ao período imperial). Na atualidade da desmodernização capitalista, a renda nacional por brasileiro aumenta apenas 0,6% como média anual, o que equivale a apenas 27% do verificado entre as décadas de 1890 e 1980.

No ano de 1900, por exemplo, quando o Brasil representava apenas 0,8% do PIB mundial, o mundo do trabalho contemplava somente 8% do total dos ocupados na condição de assalariados. Naquela oportunidade, 71% do total das ocupações do país se localizavam nas atividades agropecuárias, enquanto os serviços respondiam por 16% e a indústria acoplada ao artesanato, também por 13%.

Em relação a isso, Caio Prado Júnior (Formação do Brasil contemporâneo, 1942) identificava a existência de dois setores econômicos com dinâmica distinta. De um lado, o setor orgânico do capital que conformava o núcleo central da produção em grande escala para o exterior (exportação e importação) e, de outro, o setor inorgânico absorvedor da população trabalhadora sobrante nas atividades de subsistência e na economia popular.

No ano de 1980, o Brasil respondeu por 3,2% do PIB mundial, isto é, quatro vezes mais que em 1900. O emprego assalariado alcançou 66% do total da ocupação (8,3 vezes mais que em 1900) e as atividades tipicamente capitalistas que funcionam exclusivamente segundo a lógica do lucro responderam por 53,5% do total da ocupação do país (8,9 vezes maior que em 1900).

Diante do predomínio do processo de modernização capitalista, as atividades de subsistência e de economia popular registraram trajetória decrescente por serem – em boa medida – metamorfoseadas em organizações tipicamente capitalistas. Para o ano de 1980, por exemplo, a economia popular e de subsistência absorveu 40,1% do total dos postos de trabalho do país (55,4% inferior a 1900), enquanto o setor público que não opera segundo a lógica do lucro ocupou 6,4% da população trabalhadora (3,2 vezes mais que em 1900).

A partir de 1990, contudo, as atividades tipicamente capitalistas no Brasil passaram a perder participação relativa no total da ocupação, indicando o esvaziamento de sua vitalidade lucrativa, cada vez mais dominada pela lógica do rentismo e da herança como correia de transmissão da riqueza velha a asfixiar a geração de riqueza nova. Sobre o rentismo movido pelas altas finanças, extração mineral e vegetal e acionistas e beneficiários de privatizações, Brett Christophers, no livro Rentier Capitalism (2020), destacou que a renda seria o pagamento ao rentista somente por controlar algo valioso que derivaria da propriedade, posse ou controle de bens escassos gerados por condições de concorrência limitada ou inexistente.

Sobre a desfuncionalidade da herança no capitalismo, o referenciado economista britânico John Stuart Mill (1806-1873) anotou em Princípios de Economia Política: “Não posso admitir que um pai ou mãe devam a seus filhos, simplesmente por serem seus filhos, e para enriquecê-los sem a necessidade de trabalharem, tudo aquilo que possam ter herdado, ou, pior ainda, tudo aquilo que possam ter adquirido em vida.”

Para o Brasil do ano de 2021, responsável por apenas 1,6% do PIB mundial (50% inferior ao do ano de 1980), as atividades tipicamente capitalistas empregaram 46,1% do total dos ocupados (13,8% a menos que em 1980). O setor público absorveu 9,9% da população trabalhadora (54,7% superior ao ano de 1980) e a economia popular e de subsistência contemplou 44% (9,7% mais que em 1980).

É neste novo contexto nacional que o arsenal de políticas públicas precisa ser profundamente reconsiderado. Ao contrário do passado de modernização, quando coube ao Estado atuar fortemente em prol das atividades tipicamente capitalistas, a marcha atual de mais de três décadas contaminou o Estado, que se especializou na gestão social que posterga a catástrofe produzida pelas heranças improdutivamente preservadas pelo sustentáculo da riqueza rentista.

Políticas públicas que dialoguem com a efervescência da economia popular e de subsistência imporiam a modernização estatal, compatível com as exigências e especificidades da produção e distribuição mercantil, do crédito, tecnologias e outras modalidades distintas das urgências das atividades tipicamente mercantis. Foi por compreender as diferenças marcantes da agropecuária capitalista em relação à familiar que, na crise da dívida externa, o Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários foi criado em 1982 (Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário, em 1985, Ministério da Política Fundiária e do Desenvolvimento Agrário, em 1999, e, atualmente, Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar).

Da mesma forma, as diferenças entre a economia popular e de subsistência e as atividades tipicamente capitalistas são imensas, especialmente no meio urbano. Para os que não acreditam ser o capitalismo salvador da pátria, segundo os conhecedores do quanto a economia brasileira é híbrida e plural, o caminho da insensatez pode ser interrompido, consagrando a hora e a vez da economia popular no Brasil.

Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROSQUINHENTOS


Matérias Publicadas por Data

Artigos do CFEMEA

Coloque seu email em nossa lista

lia zanotta4
CLIQUE E LEIA:

Lia Zanotta

A maternidade desejada é a única possibilidade de aquietar corações e mentes. A maternidade desejada depende de circunstâncias e momentos e se dá entre possibilidades e impossibilidades. Como num mundo onde se afirmam a igualdade de direitos de gênero e raça quer-se impor a maternidade obrigatória às mulheres?

ivone gebara religiosas pelos direitos

Nesses tempos de mares conturbados não há calmaria, não há possibilidade de se esconder dos conflitos, de não cair nos abismos das acusações e divisões sobretudo frente a certos problemas que a vida insiste em nos apresentar. O diálogo, a compreensão mútua, a solidariedade real, o amor ao próximo correm o risco de se tornarem palavras vazias sobretudo na boca dos que se julgam seus representantes.

Violência contra as mulheres em dados

Cfemea Perfil Parlamentar

Direitos Sexuais e Reprodutivos

logo ulf4

Logomarca NPNM

Cfemea Perfil Parlamentar

Informe sobre o monitoramento do Congresso Nacional maio-junho 2023

legalizar aborto

...