Das privatizações selvagens às escolas militarizadas. Do libera-geral de armas ao estrangulamento da ciência. Quais são os 200 decretos que Lula pode revogar. O que eles revelam sobre o método de destruição do fascismo à brasileira
Josué Medeiros em entrevista a Antonio Martins
Um neologismo insinuou-se, nas últimas semanas, no vocabulário político brasileiro: revogaço. Ele é pronunciado muitas vezes nas redes de ativismo que formulam pautas para o governo Lula, em áreas tão diversas como Ambiente, Saúde, Trabalho, Educação, Segurança Pública, Feminismo, dissidências de gênero, Ciência e Tecnologia, Assistência Social. Ele está na pauta das equipes de transição que trabalham no Centro Cultural do Banco do Brasil, em Brasília, e se surpreendem a cada dia com o volume de “entulho fascista” que será preciso remover. Ele inclui medidas saneadoras essenciais, como a anulação dos sigilos decretados por Bolsonaro para acobertar corrupção, o fim das privatizações selvagens, a remontagem da fiscalização contra o desmatamento e o garimpo ilegal, o desbaratamento do sistema estatal de produção de fake news. Este termo – revogaço – expressa a esperança de começar a reconstruir o país em novas bases.
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O cientista político Josué Medeiros, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde dirige o Núcleo de Estudos sobre a Democracia Brasileira (Nudeb), é um dos responsáveis pela aparição do neologismo. Ele coordenou, nos últimos dois anos, uma equipe de mais de vinte pesquisadores que escrutinou cerca de 20 mil atos do governo Bolsonaro. A certa altura do trabalho, o grupo se debruçou, em especial, sobre as chamadas “medidas infralegais”. São decretos, portarias e instruções normativas que foram adotadas por atos do Poder Executivo mas que, muitas vezes, produzem efeitos de enorme relevância, chegando a definir estratégias de Estado. Sua força é também sua fraqueza; do ponto de vista institucional, estas medidas podem ser anulados por decisões unilaterais do novo presidente.
Numa etapa seguinte, os atos infralegais foram examinados por 20 especialistas em áreas temáticas. Foi então que surgiram cerca de duzentas prioridades do revogaço. Não se trata, é claro, de uma lista fechada. A ideia de revogar atos do governo Bolsonaro é anterior ao trabalho da equipe coordenada por Josué. E o relatório final – produzido com apoio das fundações Lauro Campos e Marielle Franco (do PSOL) e Rosa Luxemburgo – está inspirando movimentos sociais e pesquisadores a identificarem outras medidas que precisam ser anuladas para que o Brasil comece a virar a página de seu pesadelo.
Em entrevista a Outras Palavras, o professor da UFRJ debateu um dos pontos mais instigantes da pesquisa: o que ela revela sobre a natureza do fascismo contemporâneo e, em especial, sua aplicação no Brasil. A investigação é importante porque ajuda a jogar luz sobre aspectos que ainda carecem de entendimento mais profundo. Por exemplo: a estranha condição de um fascismo que devasta o Estado ao invés de fortalecê-lo; as relações entre ultradireita e neoliberalismo; o papel dos militares no projeto bolsonarista; ou o porquê da centralidade da chamada “pauta de costumes”.
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“Não devemos acreditar em nossos memes, que veem no bolsonarismo um projeto precário, aplicado aos tropeções”, adverte Josué. A análise de milhares de documentos demonstrou, ao contrário, a existência de método e coerência na ação da ultradireita brasileira. Porém – e aqui sobressai uma diferença notável em relação ao fascismo clássico – não se tratou, aos menos nos quatro anos de Bolsonaro, de construir um novo Estado. O empenho central foi o de destruir as instituições estatais que tivessem relação com a democracia, a distribuição de riquezas, a independência econômica e o desenvolvimento do país, a garantia de direitos sociais, o funcionamento da máquina pública e mesmo as boas relações entre os entes da Federação. Mussolini viu no Estado, na indústria e na guerra instrumentos para que a Itália revivesse as glórias de Roma. O getulismo, mesmo em seu período ditatorial, modernizou o serviço público, ampliou os direitos trabalhistas e lançou as bases de um sistema de hospitais do Estado. O bolsonarismo agiu em sentido contrário.
Foi uma ação consciente e articulada com a extrema direita global, frisa Josué. O relatório do Revogaço lembra que ainda em março 2019, pouco depois de eleito, Bolsonaro falou em desconstrução ao discursar em Washington, num jantar com expoentes do ultraconservadorismo norte-americano. “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer”. Em setembro desse mesmo ano, o ministro da Economia, Paulo Guedes, falaria em “privatizar todas as estatais em bloco” e proporia a extinção sumária de 260 fundos públicos por meio dos quais o Estado financia políticas setoriais específicas. E em abril de 2020, em reunião ministerial, Ricardo Sales proporia “ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”.
Ao identificar um “período de destruição política, social e cultural sem precedentes na história do país”, o relatório Revogaço identifica quatro ações paralelas de devastação: orçamentária, do público, ideológica e institucional. Descreve cada uma delas e propõe como revertê-las por meio de atos revogatórios. Vale examiná-las brevemente.
O Método Bolsonaro de Destruição Orçamentária consistiu, segundo o texto, numa “profunda e constante operação de corte orçamentário para asfixiar materialmente as estruturas do Estado cuja função é garantir e promover os direitos”. O movimento começa, evidentemente, antes de 2018. Desde o governo Collor de Mello prevaleceu uma ideia de “disciplina fiscal” que sufocou os serviços públicos. Para Josué, no entanto, houve uma mudança de qualidade sob a ultradireita. Já não se alegava, sequer de forma hipócrita, que os recursos cortados seriam repostos assim que “surgissem” recursos; e não se falava em recuperação futura. A redução tornou-se ideologia.
Alguns exemplos são eloquentes. O bolsonarismo foi muito além do teto de gastos estabelecido pela Emenda Constitucional 95. Entre 2016 e 2021, os recursos federais para Ciência e Tecnologia foram reduzidos em 58%; os destinados à Assistência Social, em 54%; os orientados à Educação, em 44%.
A garantia dos recursos públicos necessários para iniciar a reconstrução nacional será uma disputa política complexa, árdua e de longa duração. Mas o relatório Revogaço propõe algumas medidas que, por seu valor simbólico, podem marcar vitórias importantes, expor o absurdo da destruição orçamentária e iniciar um movimento de contraofensiva. A primeira é anular os cortes de 95% das verbas para construção de moradias populares; 97,5% para creches; e de 100% para monitoramento de queimadas nas florestas. Um país digno não pode suportar tais estrangulamentos. Revogá-los será simbólico e pedagógico, na luta contra a “disciplina fiscal” imposta pelos mercados. Assim como anular os dois decretos (10.540/2020, 10.888/2021) e a portaria (8893/2020) do Poder Executivo sem os quais não se sustenta o “orçamento secreto”.
Se os cortes no orçamento inviabilizam aos poucos as políticas públicas do Estado, ao paralisar órgãos indispensáveis para executá-las, muito mais profundas são as consequências do Método Bolsonaro de Destruição do Público, o segundo eixo do trabalho de devastação promovido pela ultradireita. Trata-se, basicamente, da privatização – não apenas de empresas, mas de partes do território brasileiro. Aqui, como no ponto anterior, a ultradireita não inovou; mas radicalizou ao extremo as políticas adotadas pelos neoliberais “que usam talheres”.
Pela primeira vez, tanto o presidente quanto o ministro da Economia falaram em vender a Petrobrás, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal. O governo conseguiu privatizar a Eletrobrás, que além de maior geradora de energia do país controla, com suas represas, a maior parte das bacias hidrográficas (e das águas do país). Um Plano Nacional de Desestatização (PND) encaminhou a privatização das empresas que detêm os dados de quase toda a população brasileira – Correios, Serpro e Dataprev, além da EBC, única empresa pública de Comunicações. E foram colocadas à venda, em caráter definitivo, 23 Unidades de Conservação, dentre as quais quatro Florestas Nacionais.
Por fim, num programa piloto para privatizar também os serviços públicos, o governo lançou, para grande entusiasmo do ministro da Fazenda, os vouchers para creches. A intenção explícita de Guedes era estender a iniciativa para todo o sistema escolar. Se a lógica prevalecesse, o Estado brasileiro se desobrigaria pouco a pouco de manter redes coerentes de serviços públicos e de executar políticas em áreas tão decisivas como Educação, Saúde e Assistência Social. Tudo passaria às mãos de empresas voltadas essencialmente para o lucro – e sustentadas com recursos públicos…
O Revogaço propõe o fim do PND e dos vouchers-creche e a anulação da venda das Unidades de Conservação. Também sugere reverter a privatização da Eletrobrás, embora este ato, determinado por lei, exija uma luta política mais árdua que a simples canetada do presidente da República. Para que fique realmente completo, o rol de medidas para reverter a Destruição do Público deveria incluir a desprivatização das subsidiárias da Petrobrás (em especial a BR Distribuidora) e a reversão, por esta estatal, tanto da política de preços PPI quanto da decisão estratégica de transferir de reduzir seus investimentos ao mínimo e transferir o grosso de seus lucros para acionistas estrangeiros – em geral megafundos especulativos.
Um capítulo especial do relatório Revogaço é destinado ao Método Bolsonaro de Destruição Ideológica. Aqui estão incluídas políticas como o “familismo”, que reconhece apenas uma modalidade – a mais tradicional – de relação familiar; o armamento em massa da população civil; a criação das Escolas Cívico-Militares; a destruição das políticas de memória e verdade; as tentativas de reduzir a autonomia ou submeter as mulheres a um controle, a população negra, os povos indígenas, os quilombolas, os dissidentes sexuais e de gênero; o ataque às ações protetivas de setores que representam a diversidade da sociedade brasileira.
O relatório Revogaço faz um alerta político. É um erro grave pensar que se trata de “cortinas de fumaça”, lançadas para desviar a atenção da opinião pública do que é “realmente importante”. Não: estas políticas são centrais à estratégia do fascismo contemporâneo – e têm centralidade ainda maior no Brasil. Esta corrente política compreendeu que não será capaz de tornar seu projeto vitorioso se não travar uma “guerra cultural” contra valores muito presentes na sociedade brasileira. Ela precisa marginalizar ideias como a democracia, a solidariedade, a diversidade, a colaboração, a repartição de riquezas, a busca de novas relações entre o ser humano e a natureza. E se esforça, ao mesmo tempo, para tornar hegemônicas construções éticas hoje predominantes apenas entre setores minoritários da população: o supremacismo de certos grupos sociais, a prevalência da lei do mais forte, a militarização das relações sociais, a visão de um país “uniforme”.
A relevância da “guerra cultural” para o bolsonarismo resultou num conjunto vastíssimo de medidas infralegais que precisa ser revogado. Entre muitos outros, o relatório fala no decreto 10.112/2019, que corroeu as medidas de combate à violência contra as mulheres; no programa “Mães do Brasil”, contrário à diversidade; na portaria 2282/2000, que dificulta o acesso das mulheres ao aborto legal, mesmo nos poucos casos em que este é previsto; em todos os atos que ampliam e facilitam o acesso às armas; nos decretos 9761/2019 e 9926/2019, que esvaziam o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas para favorecer as políticas de abstinência absoluta e as “comunidades terapêuticas”; nas decisões que deformaram as emissoras públicas de TV, convertendo-as ou em meras difusoras de atos oficiais ou – muito pior – em fonte de “legitimação” das fake news.
O Revogaço propõe, em seu quarto eixo, medidas para reverter o Método Bolsonaro de Destruição Institucional. Estão enfeixados aqui, em primeiro lugar, os ataques aos raros mecanismos de participação popular na vida institucional brasileira. Num único ato, o decreto 9759/2019, o Executivo extinguiu de uma só vez 650 conselhos de participação social (mais tarde a decisão foi em parte revogada pelo STF, mas tornou-se efetiva em 75% dos casos). Mas o bolsonarismo atentou também contra outras normas que estabeleciam relações razoavelmente democráticas entre os entes federativos, buscando a concentração máxima de poder. Em sistemas que organizam direitos sociais, mas dependem da colaboração da União com estados e municípios (o SUS e o CRAS, por exemplo), o governo federal ausentou-se, descumpriu obrigações e tornou extremamente difícil o acesso de prefeituras e governos estaduais aos órgãos federais que deveriam atendê-los.
A destruição institucional estendeu-se a atos que tornaram difícil ou impossível o acesso à Lei de Acesso à Informação. A obsessão por sigilo dos atos governamentais chegou ao grotesco, quando um comunicado do general Augusto Heleno sustou a divulgação do nome dos visitantes aos palácios da Alvorada e do Jaburu. Para ocupar os postos de comando do Estado brasileiro e impor com mais facilidade seus objetivos de desmonte, o Executivo adotou uma política ostensiva de militarização do Estado, com ampliação das facilidades para que militares ocupem cargos civis e a criação de postos de natureza militar em mais de 15 órgãos públicos, inclusive o STF e a Advocacia Geral da União. Para cada ponto desta ampla gama de ataques, o relatório tem propostas claras de revogação.
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Há chance real de alcançar o Revogaço? Até que ponto? Josué Medeiros tem alguma razão para otimismo. A proposta foi, em sua totalidade, encampada pelo PSOL. Ao conhecê-la, a deputada Gleisi Hoffmann, presidente do PT, comprometeu-se a apresentá-la a todas as equipes do Grupo de Transição para o governo Lula. Isso efetivamente foi feito.
A decisão do presidente eleito é, até o momento, desconhecida. É provável que não tenha sido tomada. Num governo de frente, pesarão sempre as correlações de força. O papel da sociedade civil será decisivo. No cenário pós-eleitoral, têm despontado iniciativas de mobilização importantes. Nos últimos dias, inúmeras redes de movimentos manifestaram suas reivindicações de mudança – e a maior parte delas inclui iniciativas de remoção do “entulho fascista”. Em compensação, manter ao menos parte deste escombros interessa a setores poderosos encastelados no Congresso, no Judiciário e na mídia.
A luta pode ser prolongada. É um trunfo poderoso poder contar, em favor da reconstrução nacional, com o apoio de coletivos de pesquisadores como o que construiu o relatório Revogaço.
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