Mas não nos enganemos: aquilo que parece inofensivo hoje – o afeto dirigido a bonecas – pode ser o alicerce simbólico para formas futuras de abuso e dominação.

O bebê reborn e a falsolatria: um sintoma do presente e um presságio do futuro
 

A febre dos bebês reborn – bonecas hiper-realistas tratadas como filhos por adultos que as alimentam, vestem, ninam e registram em redes sociais – não pode ser reduzida a uma excentricidade. Ela é, antes, um sintoma da falsolatria, este ethos contemporâneo engendrado pela cultura digital e pelo capitalismo de plataforma, cujo motor é a captura da atenção e o engajamento emocional com o simulacro. O bebê reborn, ao ser inserido em enredos performados por seus donos nas mídias sociais, revela-se não só como fetiche, mas também como prenúncio de um futuro em que a alteridade será domesticada, neutralizada ou anulada.

Chamo de falsolatria essa adesão amorosa à mentira performada, essa celebração do falso como se fosse o verdadeiro, esse investimento libidinal no que sabidamente não é. O bebê reborn – que não chora, não cresce, não recusa o afeto, não morde o seio, não contesta a autoridade da mãe – é a forma ideal de um “filho sem alteridade”. Ao contrário da criança real, descrita por Melanie Klein como sujeita a uma ambivalência constitutiva – o amor e o ódio dirigidos à mãe –, o bebê reborn permite uma maternidade sem conflito, sem frustração e sem a angústia do corte. Trata-se, portanto, de uma simulação narcísica da maternidade, em que o outro é apenas extensão do eu.

Se, como nos ensinou Donna Haraway, já somos cyborgs – seres compostos de carne e máquina, de natureza e cultura, de orgânico e prótese –, o bebê reborn pode ser lido como mais uma extensão desse processo. Muitos de nós já incorporamos próteses – lentes, marcapassos, implantes hormonais, celulares colados à mão – como se fossem partes de nós. Por que, então, um bebê reborn não poderia ser considerado uma prótese do desejo de ser mãe, pai ou cuidador? O problema está menos na incorporação em si do objeto do desejo e mais na negação da alteridade e da finitude como constituintes do real.

Como os “replicantes” de Blade Runner e os “anfitriões” de Westworld, o bebê reborn é um prenúncio de um futuro em que a relação com o outro será substituída pela simulação do outro — ou pela ficção de um outro que jamais se rebelará, jamais fugirá, jamais dirá “não”. Tal como Freud descreveu no ensaio sobre o fetiche, o desejo está muitas vezes atrelado a uma recusa: no caso do bebê reborn, recusa-se a castração simbólica que toda maternidade real impõe, e prefere-se a estabilidade do objeto inanimado – mas hiper-realista – sobre a instabilidade e imprevisibilidade da vida. A histeria, por sua vez, também nos ajuda a pensar esse fenômeno: uma encenação da falta que dissimula, teatraliza e captura a atenção do outro em torno de uma fantasia de completude.

Há algo de obsceno na forma como esse simulacro é investido de afeto. E não só de afeto: os casos de guarda compartilhada de bebês reborn que já chegaram ao Judiciário brasileiro mostram que estamos diante de uma nova fronteira simbólica em que o falso disputa com o real não só a atenção, mas o próprio estatuto jurídico. Isso nos obriga a repensar urgentemente os contornos éticos desse fenômeno. Se, por exemplo, um adulto usar um bebê reborn para fins sexuais, estaremos diante de um crime? Ou a ausência de uma criança “real” protegerá esse ato? A pergunta, em si, revela o quanto o real já não é um dado, mas um campo em disputa – e o quanto o simbólico é, como já dizia Bourdieu, um campo de poder.

A comparação entre o culto aos bebês reborn e o abandono real de crianças não é gratuita. É mais fácil amar o que não cresce, o que não te contesta, o que não demanda mais do que likes e curtidas. É mais fácil exibir bonecas em vídeos virais do que enfrentar a complexidade de educar uma criança real, com suas perguntas difíceis, suas birras, sua autonomia crescente. O bebê reborn, portanto, encarna a maternidade sem maternidade, a infância sem infância, a relação sem alteridade. Ele é o fetiche perfeito da falsolatria: parece humano, mas não é; parece relação, mas não passa de solilóquio.

Contudo, há um elemento de gênero que não pode ser ignorado. O fato de o uso de bebês reborn provocar escândalo, como se fosse um sintoma mais grave ou “louco” do que o uso de bonecas sexuais hiper-realistas por homens adultos, revela a misoginia estrutural que ainda conforma os regimes de visibilidade e julgamento na cultura patriarcal. Quando homens acoplam seu desejo a bonecas de silicone que simulam mulheres – e inclusive têm orifícios penetráveis e vozes programadas para gemer –, o fenômeno é naturalizado, e não raramente tratado com condescendência cômica ou indulgência. Já quando mulheres projetam seu afeto e desejo de cuidado sobre uma boneca hiper-realista que simula um bebê, o escândalo explode, e não são poucos os que as tacham de “loucas” ou “patológicas”.

Como argumenta Rebecca Solnit, o patriarcado tem uma longa tradição de ridicularizar ou patologizar o desejo feminino, especialmente quando ele escapa ao controle masculino ou desafia as normas heteronormativas da maternidade e do amor. Marcia Tiburi, por sua vez, mostra como a mulher é constantemente colocada no lugar do delírio, da histeria e do excesso, enquanto os delírios masculinos são encobertos por discursos de racionalidade e desejo legítimo. A falsolatria, nesse caso, revela sua face sexista: ao aceitar o fetiche masculino e reprovar o feminino, reafirma a assimetria de gênero no campo simbólico.

Ainda assim, é necessário marcar uma diferença entre os objetos de uso sexual – como os dildos e cintas – e os bebês reborn. Enquanto os primeiros se inscrevem, como lembra Paul B. Preciado, na tradição do erotismo queer, sendo próteses que servem ao jogo, à paródia e à reinvenção dos corpos, o bebê reborn pertence a uma lógica da simulação do real: ele não serve ao jogo, mas à ilusão da verdade. O dildo não simula um homem real, não tem rosto, nome ou CPF; ele é instrumento, não personagem. O bebê reborn, por outro lado, é encenado como sujeito – tem nome, berço, enxoval, aniversário e mãe. Há, portanto, uma diferença simbólica entre a prótese que reinventa o desejo e a boneca que o congela num teatro de amor sem alteridade.

Mas não nos enganemos: aquilo que parece inofensivo hoje – o afeto dirigido a bonecas – pode ser o alicerce simbólico para formas futuras de abuso e dominação. Quando o outro é reduzido a objeto manipulável e obediente, o que está sendo eliminado não é só a alteridade, mas a própria ética da convivência. O bebê reborn, nesse sentido, é sintoma do que já está – a falsolatria digital que nos impede de distinguir afeto de algoritmo – e também anúncio do que vem: um mundo em que o amor será exercido apenas sobre aquilo que se pode possuir, controlar e simular.

Jean Wyllys é jornalista, escritor e artista visual. Mestre em Letras é Linguística e doutorando em Ciência Política, é autor de Tempo bom, tempo ruim (2015), O que será (2019) e O que não se pode dizer (2022).

 

fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/bebe-reborn/

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