Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase

Agente acha normal falar em agricultura familiar e esquece que atrás de uma simples denominação existe muita história. Trata-sede um conceito que, ao mesmo tempo, revela e esconde muita coisa. Incorpora práticas e carrega uma história de lutas. Procura, sobretudo, diferenciar um tipo de organização social do trabalho no campo em relação à empresas rurais e latifúndios. As empresas têm uma lógica centrada na agricultura como negócio. Os latifúndios se caracterizam mais pelo controle do acesso à terra do que pela atividade agrícola. A agricultura familiar, como o próprio nome indica, tem uma lógica de organização centrada no trabalho familiar, buscando a sobrevivência e o bem estar de seus próprios membros. Ao todo, são mais de 4 milhões de estabelecimentos agrícolas familiares, algo em torno de três quartos do total de estabelecimentos existentes no Brasil.

Mais do que um conceito analítico, importa ver a agricultura familiar como um conceito político, forjado na luta, portador de identidade, direitos e formas de organização e luta de trabalhadoras e trabalhadores rurais.

A agricultura familiar, entretanto, não revela, antes esconde, a situação das mulheres nela engajadas. Aqui, como na sociedade inteira, o familiar significa profunda desigualdade de relações entre homens e mulheres e uma estrutura patriarcal opressiva. Contudo, nenhuma luta que nos trouxe até o reconhecimento da especificidade da agricultura familiar, em termos de direitos e de políticas públicas, não se fez sem elas, sem a decisiva contribuição das mulheres.

Além da dupla jornada, as mulheres têm uma dupla luta. Luta ao lado dos companheiros homens para conquistar direitos e políticas em relação ao trabalho, à reforma agrária e à agricultura familiar. E luta para diferenciar-se frente aos companheiros e no reconhecimento público afirmando a sua especificidade de trabalhadoras rurais. Os vários movimentos de mulheres trabalhadoras rurais são um atestado político de sua determinação e conquistas. Mas a sua tarefa é árdua, pouco conhecida e reconhecida publicamente.

O resgate político da agricultura familiar tem muito a ver com a história de lutas. As atividades desenvolvidas pelas mulheres não são reconhecidas por uma estreita visão mercantil dominante, pois não são produtoras de renda monetária. No entanto, produtoras de vida. São elas, donas da fertilidade, que mais contribuem para a preservação da biodiversidade no pequeno lote de terra, fazendo seleção de espécies e de sementes, preservando a base de autonomia e a especificidade da agricultura familiar.

Estamos longe de reconhecer o lugar e a contribuição fundamental das mulheres para a viabilidade da agricultura familiar. A face pública é ainda dos homens, pois são eles que detêm a chave dos direitos e do acesso às políticas públicas fundamentais, tanto na reforma agrária, como no crédito do PRONAF ou na assistência técnica. Aliás, todas estas políticas são desenhadas para homens trabalhadores rurais. O PRONAF, por exemplo, é dominantemente gerido como um crédito para o lado mercantil da agricultura familiar, exatamente lá onde dominam os homens. Todas as outras atividades, no geral comandadas pelas mulheres, não são reconhecidas como produtivas pelo sistema financeiro. Isto sem falar nos gerentes, que além da aversão geral à agricultura familiar - pois pouco rentável numa perspectiva de acumular lucros com financiamentos - desqualificam totalmente as mulheres trabalhadoras rurais em seus pedidos de crédito.

Mas as mulheres trabalhadoras rurais estão mudando este quadro. Ao menos no seio dos movimentos sociais a sua presença física e as suas demandas já não podem mais ser ignoradas. É sintomático, também, que um homem e dirigente de uma ONG seja obrigado a escrever sobre elas. Aliás, são estas lutas de mulheres que me fazem rever a minha própria história pessoal, filho de colonos de descendência polonesa, numa comunidade de agricultores familiares o interior do Rio Grande do Sul. A bravura e determinação de mulheres, como a minha mãe, está na origem do denso tecido social protetor que conquistaram os agricultores familiares do Sul. As lutas das mulheres trabalhadores rurais de hoje, porém, me dão a certeza que as filhas e netas delas não viverão na mais pura privacidade familiar e anonimato imposto pelo patriarcado como minha mãe e tias.


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