Vitória é a palavra que feministas e o movimento social estão usando para expressar o sentimento com relação à sanção do PLC 37/06 (PL 4559/04 na Câmara Federal), que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulheres. E não poderia ser outra. A Lei 11.340 resulta de uma luta de 30 anos, que passou por manifestações e estratégias diferenciadas para sensibilizar o Estado e a sociedade brasileira de que esse tipo de violência não é assunto privado, mas um assunto de interesse público.

Desde 2003, trabalhamos com determinação e articuladas com o movimento social, Poder Público e Bancada Feminina do Congresso para que o Brasil se inscrevesse no rol de países da América Latina e Caribe que contam com uma lei integral de combate a violência doméstica e familiar e cumprisse uma determinação constitucional (§ 8 do art. 226) e os compromissos internacionais (CEDAW e Convenção de Belém do Pará). Durante esse período, vocês puderam acompanhar, passo a passo, todo o percurso do projeto de lei, desde a sua elaboração até a aprovação no Senado (04 de julho de 2006). Acompanharam também as dificuldades e as disputas em torno do projeto. Mobilizaram-se para participarem das audiências públicas, promoveram seminários, enviaram diversas correspondências para Câmara e Senado solicitando a aprovação do mesmo. Enfim, discutiram e abraçaram uma idéia de projeto de lei que tinha por finalidade criar mecanismos de prevenção, coibição e punição, que atendesse aos anseios e reivindicações do movimento e de milhares de brasileiras que passam (ou passaram) por uma situação de violência, que abrangesse a complexidade do fenômeno da violência doméstica e que contribuísse para sua desnaturalização e a reconhecesse com uma violação dos direitos humanos das mulheres.

As principais dificuldades encontradas decorreram da falta de compreensão de alguns/mas juristas da necessidade de retirar os casos de violência doméstica do âmbito dos Juizados Especiais Criminais (JECRIM - Lei 9.099/1995) que os consideram como crimes de menor potencial ofensivo. Os JECRIMs não foram criados para resolver os conflitos da violência doméstica contra as mulheres. Sua criação teve como objetivo "desafogar" o Poder Judiciário com um procedimento célere e informal. Porém, estes dez anos de funcionamento demonstraram que sua estrutura é ineficiente e incipiente para dar soluções a conflitos desta espécie, pois trata de maneira juridicamente inadequada uma conduta complexa.

A adoção de uma lei integral é um importante instrumento para o enfrentamento da violência. As políticas e mudanças propostas contribuirão para o fim da impunidade e dos dados alarmantes da violência contra as mulheres no Brasil: a cada 15 segundos uma mulher é agredida; em Pernambuco, de janeiro a junho de 2006, cerca de 170 mulheres foram assassinadas; e no Distrito Federal em duas semanas 07 (sete) sete mulheres foram assassinadas, correspondendo 1 (uma) morte a cada 2 dias1.

Acreditamos que o caminho percorrido por esse marco legal e o apoio de todas vocês confirmam a necessidade de sua existência e das mudanças introduzidas em nosso sistema jurídico. Exemplo disso foi a iniciativa da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) que recolheu mais de trezentas e cinqüenta assinaturas de entidades e pessoas em apoio ao manifesto pela sanção integral do PLC 37/2006, encaminhado à Presidência da República no início de agosto.

A nova lei preenche uma lacuna legislativa, significa uma conquista das mulheres e ao mesmo tempo já nos coloca frente a mais um desafio: concretizar e monitorar a implementação das mudanças propostas.

Saibam quais foram as principais mudanças:

  • Qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial à mulher, configura violência doméstica e familiar contra a mulher (no âmbito da unidade doméstica, da família ou de qualquer relação pessoal afetiva);
  • As relações homo-afetivas também estão protegidas;
  • A violência doméstica e familiar constitui uma violação dos direitos humanos das mulheres;
  • Estabelece diretrizes para a elaboração da política pública de enfrentamento à violência doméstica, que será realizada por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais;
  • Assistência especial para crianças e adolescentes que convivam com tal violência;
  • Possibilidade da inclusão da vítima no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal; do acesso à transferência de local de trabalho (quando servidora pública) e manutenção do vínculo trabalhista por até seis meses; e acesso aos benefícios do desenvolvimento científico e tecnológico;
  • Previsão de novas medidas protetivas de urgência que deverão ser decidas pelo juiz no prazo de 48 horas, dentre as quais temos:
  • Aquelas que obrigam o agressor: o porte de arma do agressor poderá ser suspenso e o juiz pode aplicar a prestação de alimentos provisionais ou provisórios;
  • Aquelas que protegem a mulher: os bens indevidamente subtraídos pelo agressor poderão ser restituídos, é permitida a suspensão das procurações conferidas pela mulher ao agressor;
  • Possibilidade de prisão em flagrante;
  • Possibilidade de prisão preventiva para garantir a execução das medidas protetivas de urgência quando a integridade física da mulher estiver ameaçada;
  • A mulher deverá ser comunicada dos atos processuais relativos ao agressor, especialmente dos pertinentes ao ingresso e à saída da prisão;
  • Não mais é permitido que a mulher em situação de violência entregar intimação ou notificação ao agressor;
  • A Lei 9.099/95 não mais poderá ser aplicada no julgamento dos crimes de violência doméstica e familiar contra as mulheres;
  • Criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com novo procedimento (com competência para os processos civis e criminais; renúncia à representação somente em audiência perante o juiz e vedação da aplicação de penas de prestação pecuniária e de cesta básica );
  • Até a criação dos Juizados, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para julgar os casos de violência doméstica;
  • Garantia de acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita;
  • Estímulo à criação de centros de atendimento psicossocial e jurídico, casas-abrigo, delegacias especializadas, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde, centros especializados de perícias médico-legais, centros de educação e de reabilitação para os agressores;
  • Aumento da pena do crime de violência doméstica (§ 9º do art 129 do Código Penal) passa a ser de 3 meses a 3 anos;
  • Aumento da pena em até 1/3, se a violência for cometida contra a mulher portadora de deficiência.

(1) Dado extraído da matéria "A Morte como Ela É", de autoria de Ana Beatriz Magno, publicada no Correio Brasiliense de 23/07/06. Ainda segundo a reportagem "Todas as mortas tinham menos de 40 anos de idade e três já eram mães quando pararam de respirar. Somadas, deixaram cinco crianças órfãs. Nenhuma com mais de sete anos".


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