Para alcançar objetivo de aleitamento infantil estabelecido pela OMS, Brasil terá de enfrentar o problema da licença-maternidade curta e da precarização do trabalho. Sem falar nas desigualdades de gênero e de raça

OUTRASAÚDE

Publicado 04/08/2023 às 09:25 - Outras Pavabras

 

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Em termos de amamentação, há um descompasso entre o que é recomendado para a alimentação dos bebês e o tempo de licença-maternidade para as mães brasileiras. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que o aleitamento seja exclusivo até os seis meses de vida, e que se torne complementar, a partir de então, pelo menos até os dois anos de idade da criança. Já a CLT garante às mães apenas 4 meses de dispensa para cuidar de seus filhos, deixando dois meses da alimentação descobertos. É pouco, mas há quem se encontre em situação pior. Com a diminuição de vínculos formais de trabalho, essa proteção passa a cobrir cada vez menos mulheres – e deixa de fora em especial as mais vulneráveis.

Agosto foi o mês escolhido, no Brasil, para conscientizar a sociedade sobre os benefícios do leite materno, ampliando a Semana do Aleitamento Materno definida pela OMS. E chama a atenção um dado da pesquisa mais recente sobre as taxas de amamentação no Brasil, o Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (ENANI-2019). Até os 4 meses, a prevalência de bebês brasileiros que recebem leite materno exclusivamente é de 59,7%. Mas essa taxa cai bruscamente nos dois meses seguintes para 45,8%. A OMS definiu, como meta, que o índice atinja 50% até 2025 a e 70% até 2030. O Brasil não estaria tão distante se o padrão dos primeiros quatro meses fosse mantido, o que mostra a importância da licença-maternidade para garantir a saúde dos recém-nascidos.

“O retorno ao trabalho é considerado um período crítico, um fator de interrupção do aleitamento materno que interfere também na continuidade dessa amamentação por um um prazo maior”, alerta Sônia Venâncio, coordenadora de Atenção à Saúde da Criança e do Adolescente do ministério da Saúde. Em entrevista ao Outra Saúde, ela recorda que a pasta promove uma ação chamada Mulher Trabalhadora que Amamenta, com dois objetivos. Quer incentivar as empresas a ampliar o tempo de licença-maternidade para seis meses e a dos pais para 20 dias. Também apoia as empresas na implementação de salas de apoio à amamentação – algo já previsto na CLT. 

Mas, pensando nas mulheres sem emprego formal, o ministério anunciou, nesta semana, que pretende instalar salas de amamentação em Unidades Básicas de Saúde (UBS) de todo o país. Com essa medida, as mães poderão ter um local de referência para retirar e armazenar seu leite de forma adequada enquanto estão fora de casa, para que possam alimentar seu bebê mais tarde. O projeto define que todas as UBSs construídas a partir de agora já contem com essa sala de amamentação. Os espaços começarão a ser implementados, ainda em 2023,  em postos de saúde de cinco estados selecionados para uma fase piloto. Um em cada região do país: Pará, Paraíba, Distrito Federal, São Paulo e Paraná. O ministério da Saúde lista, entre os benefícios do leite materno, a proteção de doenças como diarreia, infecções respiratórias e alergias, além de fortalecer o vínculo entre mãe e bebê e ser um bom exercício muscular para o desenvolvimento da fala.

A situação das mães negras trabalhadoras

Há um recorte racial importante que deve ser levado em conta, quando se busca atender às necessidades das mães com vínculos de trabalho informal. Mulheres negras são maioria em termos de precarização e subutilização da força de trabalho, portanto, têm menos direitos quando se tornam mães. A população negra também é maioria entre os brasileiros que utilizam exclusivamente os serviços do SUS, lembra Fe Lopes, psicóloga e consultora em amamentação. Ela comemora a decisão de instalar salas de amamentação em UBSs, e afirma que a medida “não irá assistir somente às trabalhadoras informais, mas irá levar acesso a apoio à amamentação nos territórios, e auxiliará toda população que depende do SUS”.

A psicóloga é uma das idealizadoras da Semana de Amamentação Negra, que acontece na última semana de agosto. Ela explica que a importância de iniciativas que pensem no aleitamento para a população negra está no fato de que os bebês que mais morrem, no Brasil, são negros. “Assim como o índice de mortalidade materna também é mais alto para mulheres negras. Em um país como o Brasil, que tem mais da metade da população composta por pessoas não brancas, os debates sobre amamentação e racismo precisam estar cada vez mais no centro das ações planejadas para promoção do aleitamento”.

Fe vai além, na análise da necessidade de se pensar em trabalhadoras em fase de aleitamento: “Se o trabalho está orientado numa perspectiva exploratória, competitiva, em que há poucos lugares disponíveis, amamentar coloca em risco o seu lugar no mercado profissional, uma vez que é uma fase da vida em que a pessoa que está amamentando precisará de condições diferentes para poder exercer suas funções – pausas para ordenha, por exemplo”. 

Uma das iniciativas da Semana da Amamentação Negra para 2023, conta Fe, é inaugurar uma biblioteca para disponibilizar de forma gratuita materiais sobre aleitamento para mães: “A ideia é que a biblioteca atue como um local que democratiza o acesso a bibliografia sobre amamentação, uma vez que os livros são, em sua maioria, muito caros. Mais do que isso, a biblioteca irá atuar diretamente na raiz do que entendemos ser fundamental para nosso fortalecimento. Ou seja, queremos mais profissionais negras se aprofundando nos determinantes sociais em saúde, especialmente no debate racial” (saiba mais informações).

O papel dos homens

O ministério da Saúde também chama a atenção, na campanha de amamentação deste ano, para o papel masculino no cuidado com os recém-nascidos. Durante evento, a ministra Nísia Trindade defendeu: “Temos que pensar ações específicas para as mulheres, mas também para os homens, para que vivam a experiência dos primeiros cuidados da amamentação de seus filhos”. A coordenadora Sônia Venâncio completa, com um apelo para que as empresas expandam o tempo de licença-paternidade para 20 dias, para que o pai “possa também oferecer o apoio à mulher, ajudando nas tarefas domésticas, cuidando dos outros filhos, além de cuidar do próprio bebê. Dando um apoio concreto, além do psicológico, que também é muito importante para a amamentação”.

A interferência da indústria

Sônia chama a atenção para mais um aspecto importante de ser abordado nas campanhas pela amamentação: as investidas da indústria de alimentos para vender fórmulas lácteas, muitas vezes fazendo as mães acreditarem que seu leite não é suficiente para o bebê. Chupetas e mamadeiras também podem ser problemáticos, por serem muitas vezes responsáveis por um desmame precoce. Por isso, a coordenadora defende uma maior fiscalização para garantir o cumprimento da norma brasileira de comercialização de alimentos para lactantes e crianças de primeira infância. 

“É  muito importante essa legislação, porque as indústrias fazem propaganda de seus produtos e isso muitas vezes leva à insegurança das mães. Elas por vezes acreditam que seu leite não é suficiente o adequado, que a fórmula infantil tem uma qualidade maior. Isso não é verdade: nenhuma fórmula consegue chegar perto da qualidade do leite materno”, afirma. Sônia anunciou que a gestão atual está retomando um grupo de trabalho sobre o tema, com participação de órgãos como a Anvisa, a Opas, a Unicef e entidades da sociedade civil como o Idec.

   
fonte: https://outraspalavras.net/outrasaude/sera-possivel-trabalhar-e-amamentar/https://outraspalavras.net/outrasaude/sera-possivel-trabalhar-e-amamentar/

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