Quase lá: Quando a esquerda não ousa governar

No Brasil, em nome dos “mercados”, Haddad anuncia cortes que apequenam Lula-3. Na França, a Frente Popular pode desperdiçar a vitória que as urnas lhe deram, por desconfiar de si mesma. O que há em comum entre estes dramas?

 

OutrasPalavras

Publicado 19/07/2024 às 19:23

Foto: Adriano Machado / Reuters

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Por que não se contingenciam os juros?, poderia ter perguntado ao ministro Fernando Haddad um dos jornalistas presentes ao anúncio, nesta quinta-feira (18/7), do corte de R$ 15 bilhões no Orçamento de 2024. Aplicados sobre um gasto público já comprimido, o bloqueio de R$ 11,2 bi e o contingenciamento de R$ 3,8 bi significam que o SUS continuará muito distante de seu projeto original; que o governo manterá o flerte com com o “novo ensino médio” e a educação segregada; que nas cidades o próprio Minha Casa, Minha Vida patinará; que quase nada se fará em relação à reforma agrária (como constatou há semanas João Pedro Stédile); que, enfim, Lula 3 permanecerá, por enquanto, apequenado.

Os 15 bilhões de reais correspondem, no entanto, a apenas 2,02% dos R$ 740 bi que o Estado brasileiro pagará, em 2024, aos rentistas. Para “equilibrar o orçamento”, bastaria desligar, em uma das 52 semanas no ano, a emissão frenética de dinheiro que favorece essencialmente o 0,1% mais rico e ajudou os bilionários brasileiros a engordar sua riqueza em 30,3% apenas nos doze meses de 2023.

Mas há um efeito politicamente ainda mais perverso, apontou a socióloga Marilane Teixeira, entrevistada por Outras Palavras na última terça-feira. O “ajuste fiscal” impede Lula 3 de se libertar das forças que o cercam. O presidente assumiu em condições muito mais ásperas que em seus mandatos anteriores. A “turma da bufunfa” exige, a mídia grita, o Legislativo abocanha. A ultradireita espreita.

A brecha para inverter esta correlação de forças hostil é a mobilização popular. Há semanas, quando as mulheres foram às ruas contra o PL do Estupro, a coalizão do atraso tremeu e recuou. Mas como despertar as maiorias se o governo assumiu a agenda de quem o sitia? O arcabouço de Haddad e o déficit zero, lembrou Marilane, não tornam as periferias mais seguras ou aprazíveis, não oferecem empregos com salários dignos e direitos, não livram as mães do imenso déficit de creches, não freiam o declínio da classe média, não reconstituem a indústria brasileira. Apenas produzem a “estabilidade” necessária para que… os agentes do “mercado” não percam o sono (e muito menos os ganhos) em nenhuma das semanas do ano.

Lula debate-se com frequência contra o poder dos mercados e reconheceu mais de uma vez que seu governo está “muito aquém do prometido”. Mas sustenta Haddad porque não tem – ele próprio – outro horizonte político. There is no alternative, sentenciou Margareth Thatcher em 1980. Mais de quatro décadas depois, a frase continua a pesar, no Ocidente, como uma sentença de morte contra a ideia de superar as leis de ferro do neoliberalismo.

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É raro. Mas às vezes, quando os líderes falham, os liderados tentam ocupar seu lugar. Uma multidão de milhares, formada principalmente por jovens, voltou a se reunir, neste mesmo 18/7, na Praça da República, em Paris. Agora, ao invés de protestar contra a ultradireita, dirigiam-se à Nova Frente Popular (NFP). A mensagem era clara, mostra uma reportagem do jornal Médiapart: Não vacilem. Formem logo um governo. Executem o programa que os elegeu.

Há quem pense que o problema de Lula 3 é ter sido eleito por uma frente amplíssima. O caso da França mostra que a realidade é mais complexa. Formada por quatro partidos – de esquerda (Insubmissos e Comunistas) e centro-esquerda (Socialistas e Ecologistas), a NFP tornou-se, surpreendentemente, a maior vitoriosa das eleições parlamentares encerradas em 7/7. Os eleitores premiaram seu programa e, no segundo turno, sua determinação em derrotar os (neo)fascistas liderados por Marine Le Pen. Os movimentos sociais organizados jogaram um papel decisivo e continuam dispostos a agir.

A NFP tinha condições para indicar rapidamente uma candidatura a primeiro-ministro e, apoiada pelas ruas, exigir do presidente Emmanuel Macron sua nomeação. Mas hesitou. Tornou-se uma casa em que não falta pão – mas todos brigam e ninguém tem razão. Os Insubmissos propuseram quatro candidatos a primeiro-ministro. Os Socialistas os rejeitaram. Em seguida, Socialistas, Comunistas e Ecologistas contrapropuseram, juntos, a ambientalista moderada Laurance Tibana. Foi a vez de os Insubmissos negarem-se a apoiá-la. Macron, um perdedor ardiloso, ganha tempo. Atrasa a nomeação, aguardando que a NFP, em suas disputas internas, termine por inviabilizar a si própria. Talvez espere que os Jogos Olímpicos esfriem o entusiasmo popular. Esta estratégia alcançou uma primeira vitória. Contando com a indefinição e perda de impulso da NFP, Macron somou as forças de dois partidos derrotados e elegeu sua candidata, a deputada Yaël Braun-Pivet presidente da Assembleia Nacional. Tentará repetir o mesmo na escolha do primeiro ministro.

Assim como Lula, a NFP parece ter perdido o horizonte político. Após as eleições, tinha força para exigir a aplicação de seu programa – em especial, a volta da aposentadoria aos 60 anos e o aumento do salário mínimo. Preferiu entregar-se à disputa interna pelo nome do chefe de governo. Os manifestantes presentes à Praça da República estão frustrados, mostra o Médiapart. Alguns deles, antes descrentes da democracia, votaram pela primeira vez nestas eleições, para se somar à luta contra a extrema direita. Seus representantes não parecem capazes de fazer jus a este voto.

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Trabalhadores de todos os países, uni-vos. Nos séculos XIX e XX, as lutas relacionadas ao trabalho foram vistas como a chave para vencer o capitalismo. Décadas depois de Karl Marx e Friedrich Engels inscreverem a célebre frase no final do Manifesto do Partido Comunista, o movimento operário dividiu-se em duas correntes, que até hoje são vistas como a “reformista” e a “revolucionária”. Tinham estratégias divergentes para superar o capitalismo. Mas nenhuma delas foi capaz de construir um projeto para o século XXI – em que a produção imaterial migrou para o centro do sistema e o rentismo captura a riqueza social sem nada produzir, servindo-se de mecanismos como os juros pagos pelo Estado.

Enquanto Marx e Engels viveram, os Estados precisavam oferecer reservas em metal para o papel-moeda que emitiam. Na Primeira Guerra Mundial, os governos beligerantes subverteram esta ordem, ao emitirem sem lastro para financiar seus exércitos. O mesmo foi feito mais tarde pelas políticas keynesianas, para financiar o Estado de bem-estar social. Mas ninguém criou tanto dinheiro quanto os Estados neoliberais. Primeiro, para salvar os bancos, na crise pós-2008. Depois, para manter as economias artificialmente aquecidas, por meio do quantitative easing. Significava emitir moeda para os mais ricos, esperando que esta, ao escorrer (trickle down) para o conjunto das sociedades, evitasse as recessões. O efeito foi alcançado, a custo da maior desigualdade da História.

Foi em 2015 que Jeremy Corbyn, então líder do Partido Trabalhista britânico, propôs o quantitative easing for the people. Se o Estado pode criar dinheiro para resgatar os rentistas, provocou ele, por que não fazê-lo em favor dos hospitais e escolas públicas? A proposta de Corbyn deu sentido e força política à Teoria Monetária Moderna, formulada um século antes.

Ela seria de extrema valia tanto para o lulismo quanto para Nova Frente Popular. Sugere, do ponto de vista teórico, desmercantilizar a vida – ou seja, caminhar no sentido oposto ao do capital contemporâneo. Mas pode ter também enorme apelo popular. Abre caminho para propor, por exemplo, a Educação integral, a urbanização das periferias, a universalização do saneamento com despoluição dos rios urbanos, a construção de redes de metrôs nas metrópoles — e a geração de milhões de postos de trabalho digno, para realizar estas tarefas.

O atrevimento custou caro a Corbyn. Uma campanha articulada pelos neoliberais e pela mídia inglesa defenestrou-o da liderança do Labour. Acusaram-no de antissemitismo (um clássico). Voltou ao Parlamento do Reino Unido nas eleições deste mês, apesar da sabotagem do partido.

Tanto Lula quanto a Nova Frente Popular francesa poderiam inspirar-se em suas ideias e sua coragem.


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