Quase lá: Uma forma de combater a mortalidade materna

Brasil reduziu a mortalidade materna – mas agora vive estagnação de índices, ainda longe da meta da OMS. Artigo propõe: sistematizar notificação de complicações graves em gestação e parto reunirá dados decisivos para proteger mães

OUTRASAÚDE

Publicado 08/08/2023 às 10:18 - Atualizado 08/08/2023 às 14:12

Créditos: SoSergipe

 

Um dos avanços brasileiros em saúde conquistados nas últimas décadas foi a redução na mortalidade materna, um indicador em que altos índices constantemente assolam os países do Sul Global. A nível internacional, a luta contra esse problema social ganhou tração com a Conferência do Cairo (1994), convocada pelas Nações Unidas, em que os países participantes – como o Brasil – se comprometeram a reduzir em 75% até 2015 sua razão de mortalidade materna (RMM), a proporção entre mães que vem a óbito “por causas ligadas à gestação, parto e puerpério” e os partos bem-sucedidos. 

De lá pra cá, mudanças nada desprezíveis foram registradas pelo Brasil nessa frente. A portaria 1.119/2008 deu um primeiro passo ao tornar obrigatória a investigação dos óbitos maternos, estimulando a redução da subnotificação e ajudando a entender as causas dessas ocorrências. Com esse movimento, a partir de 2009, o país passou a contar com dados mais seguros sobre esse tipo de ocorrência. Nos anos seguintes, a criação da Rede Cegonha em 2011 deu sequência à ampliação das políticas públicas de promoção da saúde materna. Segundo os números oficiais, de 2009 a 2019, o país viu sua taxa de mortalidade materna cair de 72 por 100 mil para 59 a cada 100 mil.

Mas nem tudo são vitórias. Antes de tudo, porque essa melhora nos índices já deu lugar à estagnação nos últimos anos – para o Observatório Obstétrico Brasileiro, houve até mesmo algum retrocesso durante a pandemia. Além disso, a redução já alcançada não aponta que o Brasil esteja se encaminhando para alcançar a meta de uma RMM de 30 mortes para 100 mil nascidos vivos até 2030, como firmado no compromisso dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Um grupo de estudiosos adiciona: o país também peca ao ainda não contar com uma plataforma integrada de acompanhamento da morbidade materna grave, tão importante quanto o registro dos óbitos.

Os pesquisadores Michelle Elaine Siqueira Ferreira, Raquel Zanatta Coutinho e Bernardo Lanza Queiroz, todos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), trazem a avaliação contida nessa breve introdução e dedicam-se a encontrar caminhos para a mudança desse quadro em um instigante ensaio publicado na última edição dos Cadernos de Saúde Pública, revista da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz) que é parceira editorial de Outra Saúde

Nomeado “Morbimortalidade materna no Brasil e a urgência de um sistema nacional de vigilância do near miss materno”, o escrito se centra no desenvolvimento da proposta que o intitula: a organização de um sistema de vigilância das das situações em que mulheres chegaram perto do óbito por complicações na gestação, parto ou puerpério. Seu estudo mais atento “pode contribuir para a elucidação de falhas e acertos na assistência obstétrica”, permitindo uma crescente melhoria “das políticas […] voltadas à saúde materna”, opinam.

Na literatura, explicam os pesquisadores, o near miss materno toma uma caracterização de contornos mais definidos a partir da publicação em 2011 de um guia da OMS com recomendações para o cuidado em casos de complicações maternas graves. Nele, o near miss é o evento em que “uma mulher que quase morreu, mas sobreviveu a uma complicação que ocorreu durante a gravidez, parto ou dentro de 42 dias após o término da gravidez”, sendo “associados às disfunções orgânicas apresentadas pela mulher e que foram provocadas ou agravadas pela gestação, ou por intercorrências durante e após o parto”. 

Ainda que não matem, eventos do tipo podem causar “sequelas irreversíveis na saúde da mulher”, o que basta para merecerem atenção prioritária das autoridades. E já fornecendo subsídios para a implementação de uma estrutura equivalente no Brasil, os autores do estudo apresentam uma gama de experiências em vários países – de continentes e situações sociais distintas – com a criação de sistemas de vigilância do near miss materno.

Entre esses observatórios, o de maior longevidade é o implantado pelo governo britânico. O United Kingdom Obstetric Surveillance System (UKOSS ou, em português, Sistema de Vigilância Obstétrica do Reino Unido) existe desde a década de 1950 e cobre todas as unidades obstétricas do país. Sua estrutura tem uma abordagem “dinâmica”, em que se leva em consideração na formulação de questionários o maior ou menor impacto de um problema em um determinado período – o que permitiu, por exemplo, que já em março de 2020 o país pudesse investigar os casos de covid-19 em gestantes.

Outra proposta digna de destaque é a da China, um pouco mais recente. Neste país, no Sistema Nacional de Vigilância de Near Miss Materno (NMNMSS, na sigla em inglês) “são coletados dados sociodemográficos, informações sobre complicações na gestação, abortamentos, intervenções e desfechos perinatais e maternos”. A criação do NMNMSS data apenas de 2010, mas ele já cobre “cerca de 400 unidades em 30 províncias chinesas”. Seu desenho permite “calcular até mesmo a mortalidade específica por causa também associada ao near miss, incluindo diferentes complicações e disfunções orgânicas”. No gigante asiático, a RMM aproxima-se de 17 por 100 mil, já bastante abaixo da meta da OMS.

A possibilidade de desenvolver estudos com essa finalidade não é nem mesmo monopólio de países com economia e infraestrutura de grande porte. Os pesquisadores também relatam no artigo o caso do pequeno Suriname, nosso vizinho na América do Sul com o menor PIB da região. Ali, a análise sistemática de prontuários de cuidados em UTIs obstétricas e de registros de atendimento hospitalar já investiga a “associação dos casos de near miss com a ocorrência de morte perinatal” (isto é, de fetos ou recém-nascidos).

Não custa esclarecer que a situação brasileira não é de apagão de dados sobre casos de morbidade materna grave. O que não há é uma clareza total sobre essas informações, tendo em vista que elas se encontram dispersas. Segundo o ensaio, os dados estão espalhados por pelo menos quatro sistemas: o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) o Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (SINAC) e o Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS), além de estudos, inquéritos e investigações dispersas. 

Ainda que melhor que a ausência de dados, esse quadro também não é ideal. Quantas reflexões úteis ao direito à saúde da população não poderiam ser produzidas se o armazenamento dessas informações se não fosse mais direto?

Ainda há outros entraves para a efetivação do acompanhamento do near miss materno. Por exemplo: não há um código CID específico que o caracterize, já que ele pode resultar de diversas condições (com as mais comuns, de acordo com os dados de países que já coletam essas informações, sendo hemorragias, distúrbios hipertensivos, sepses e tromboses). O fato dificulta ainda mais sua identificação em bases de dados.

Para que se avance, afirmam, há passos indispensáveis na materialização de um futuro Sistema Nacional de Vigilância do Near Miss Materno. Uma delas é incluir o near miss na Lista de Agravos de Notificação Compulsória, passando a ser obrigatório registrar tais complicações no SINAN. Outra, a criação de uma equipe multidisciplinar do governo encarregada pela implementação do Sistema. Pode-se também investir, como outros países fizeram, na criação de um formulário nacional padrão de atenção ao parto. Caso o formulário possa ser preenchido pela própria paciente, adiciona-se ainda o progresso na democratização das relações entre pacientes e profissionais, ao se favorecer a escuta dessas mães sobre sua experiência no sistema de saúde.

Uma possibilidade também sugerida é a integração do novo sistema ao voltado para o acompanhamento dos óbitos maternos, já existente. Surgiria daí um instrumento mais amplo de vigilância da chamada morbimortalidade materna, com grande “robustez dos dados” e capaz de ser uma ferramenta útil para um salto de qualidade na garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das brasileiras, além da garantia de sua dignidade na maternidade. Por acontecer com, as complicações graves forneceriam sobre o que ameaça as mães.

O tempo é curto até 2030, prazo das metas da ODS. Mas a ação rápida e concentrada do Estado é capaz de grandes feitos. Os benefícios do Sistema Nacional de Vigilância do Near Miss Materno seriam múltiplos: a garantia de direitos às cidadãs e a redução dos desfechos graves se somam ao potencial de apoio à pesquisa e desenvolvimento de novas políticas.  O exemplo de países ao redor do mundo está aí para sugerir que tudo isso pode estar à vista. A sugestão do grupo de pesquisadores da UFMG é instigante – e o Ministério da Saúde, chave para o governo pôr em prática a elevação da qualidade de vida da população, deve estar atento.

   

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