Histórias remetem à tortura; de choques elétricos emitidos por tornozeleiras durante o parto ao trabalho exaustivo com os filhos e o autocuidado. Emprego é inviabilizado, falta o mínimo para a sobrevivência digna. Diante disso, a apatia dos juízes

 

OUTRASMÍDIAS
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Publicado 06/06/2023 às 16:56 - Outras Palavras

Por Joana Suarez, na revista AzMina

Em prisão domiciliar, Fernanda* já sentia o quanto era desafiador ser mãe de dois filhos pequenos. Quando engravidou da terceira filha, levou um choque durante a cesária. Não foi no sentido figurativo, a corrente elétrica realmente invadiu seu corpo. Fernanda entrou em trabalho de parto e foi para o hospital com uma tornozeleira eletrônica vibrando em sua perna por sair de casa sem avisar. Os profissionais de saúde não quiseram tirar o equipamento, mesmo com o risco de ela sofrer a descarga no centro cirúrgico. Tiraram o seu brinco, o piercing, mas não o aparelho elétrico.

“Pedi pelo amor de Deus, disse que eu me responsabilizava, mas tinham umas 10 pessoas lá e ninguém quis tirar a tornozeleira, porque ficaram com medo. Tive um susto danado com aquele choque vindo de baixo pra cima, achei que ia morrer, e comecei a vomitar”, recorda com horror.  

A decisão judicial que lhe concedeu prisão domiciliar dizia que ela não poderia se afastar mais de 500 metros de casa. Mas o juiz não considerou que crianças e uma gestação têm imprevistos, tampouco que ela não teria como cuidar dos filhos assim, sem poder trabalhar para sustentá-los. 

No primeiro semestre do ano passado, havia cerca de 16 mil mulheres no Brasil em prisão domiciliar, conforme os últimos dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Sabe-se que a maioria das mulheres presas no país (74%) é mãe, mas não há informações sobre a idade dos filhos e filhas, nem um recorte sobre as que estão cumprindo pena em casa. 

A medida alternativa ao encarceramento tem, entre seus objetivos, o de proteger a primeira infância, preservando o cuidado materno. No entanto, o excesso de limitações da prisão domiciliar – a depender da visão do juiz ou juíza do caso – pode seguir prejudicando o exercício da maternidade.  

A reportagem da revista AzMina ouviu Fernanda*, em Pernambuco, Marisa*, em Minas Gerais, e Fabíola*, em São Paulo. Mulheres que têm mais de um filho e pouca ou nenhuma rede de apoio e afeto. Mães solo, sem moradia própria, sem trabalho e sem renda. Com isso, a alimentação dos filhos fica comprometida. Sair para fazer uma simples compra de supermercado é um problema, assim como levar a criança à escola ou a uma unidade de saúde numa emergência à noite.

Muitos juízes não consideram a necessidade de algumas flexibilidades, como, por exemplo, a festinha da escola ou aquele dia de homenagens à família, que caem no fim de semana. Mães e filhos não podem participar e, mais uma vez, ficam à margem da vida social.

“Para conseguirmos que a mãe (em prisão domiciliar) pudesse levar e pegar a filha menor na escola precisou todo um esforço da defensoria”, exemplificou Marília Lima Milfont, defensora pública federal, sobre uma ex-assistida do órgão. “Depois, teve uma feira de ciências em um final de semana, em que foi outro estresse para conseguirmos a autorização judicial prévia.”

Mais vulneráveis do que antes

As condições de vida das mães em cumprimento de prisão domiciliar, diante de uma série de restrições impostas e da falta de políticas sociais, de emprego e renda, podem agravar as vulnerabilidades já vivenciadas por elas antes da prisão. Esse achado está na pesquisa do Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC), que se debruça sobre o tema há uma década. 

Em 2022, o ITTC analisou e entrevistou cinco mulheres jovens (de 19 a 35 anos), mães, pobres, a maioria com baixa escolaridade. Um relatório de 106 páginas descreve “os desafios da aplicação da prisão domiciliar para o pleno exercício da maternidade e a proteção à infância”. 

Antes eu trabalhava e a gente comia uma comida melhor, comprava bastante roupa para ele (…) agora não poder sair daqui para trabalhar, muita coisa piorou”, disse uma das entrevistadas no estudo. O instituto aponta que a insegurança alimentar e a instabilidade financeira são agravadas pelo aprisionamento e pela dificuldade ao acesso a direitos básicos. 

Observamos que as histórias se repetem e, muitas vezes, justamente o fato de serem mães e estarem em busca de sua subsistência material e de seus filhos, levam para o cometimento de condutas consideradas ilícitas“, indica o relatório.

O sistema de justiça e segurança e as secretarias estaduais penitenciárias, em geral, não se articulam com prefeituras e órgãos de assistência para o atendimento dessas mulheres. Também não há regulamentação sobre o cumprimento da prisão domiciliar, tornando as decisões judiciais insuficientes diante das demandas das mães, que muitas vezes estão sós.

Camadas de solidão

Nenhum dos três filhos de Fernanda* foi planejado, e são de pais diferentes – um morreu e os outros são ausentes. O menino mais velho, de 6 anos, sofre com retardo mental e transtornos do desenvolvimento neuromotor. Segundo ela, o filho ainda não anda e não fala direito em consequência de negligência médica no parto. Sozinha, filha única de pais falecidos, essa mãe de 25 anos, conta apenas com alguns amigos: “a família que Deus manda pra gente”. 

Foi uma amiga que ficou com os filhos dela quando, após uma denúncia anônima, oito policiais vestidos de preto entraram na sua casa quebrando e bagunçando tudo, com o menino na cadeira de rodas gritando e chorando. Mandaram tirar a bebê do berço para revirar o móvel e levaram Fernanda embora, pois acharam drogas de seu ex-companheiro, que depois assumiu a posse. Mas ela seguiu com a pena, que cumpre em prisão domiciliar, na esperança de ser inocentada na sentença final. 

O Benefício de Prestação Continuada (BPC) que recebia do governo pelo filho com deficiência foi bloqueado, pois o sistema identificava que Fernanda estava na prisão, e não em domicílio. Com a tornozeleira eletrônica, só conseguia trabalho quando pessoas conhecidas topavam contratá-la para uma faxina, pois o equipamento também desperta preconceito, medo e julgamentos. Isso quando não é motivo para ela levar “baculejos” dos policiais. “Ninguém olha pra minha cara, olha direto o pé. Para o mundo eu não presto, e ninguém quer saber a minha versão”, questiona Fernanda. 

Só depois de dois meses sem o mínimo para sobreviver, ela conseguiu voltar a receber o salário mínimo mensal do BPC. “Foi um aperreio grande porque eu não tinha nada. E criança não quer saber, quer comer e pronto”, relembra.

Medo de voltar para a cadeia

Fernanda usava tornozeleira fazia quatro anos quando a entrevistei, e seu processo estava parado. “O monitoramento é para quem ameaça fugir sem cumprir a pena, não faz sentido alguém usar por muito tempo se está obedecendo”, explicou a bacharel em direito Clarissa Torres, uma das fundadoras do coletivo Liberta Elas em Pernambuco. 

Mas, na prática, com o equipamento no tornozelo, ou Fernanda desobedecia às regras, ou a família passava fome. Ela não podia trabalhar, ir à farmácia nem ao supermercado. Mesmo ao socorrer a criança, que tem algumas crises convulsivas, ela entende que precisa avisar à Justiça. Fernanda faz parte de um grupo de mulheres que convive diariamente com o medo, arriscando a volta para a prisão por atenderem necessidades primárias da maternidade, sobretudo quando não contam com nenhum suporte.

As fronteiras da prisão domiciliar não são bem esclarecidas para essas mulheres. A linguagem da Justiça e da burocracia, com todas as suas siglas, não ajuda. E a determinação de que fiquem em casa, na opinião dos pesquisadores do ITTC,  revela a falta de compreensão do Marco Legal da Primeira Infância. “Restringir a atividade de uma mãe ao ambiente doméstico limita o desenvolvimento cognitivo, motor, social e cultural da criança e dos vínculos familiares”, defende o artigo do instituto.

Sempre que Fernanda precisa checar o andamento de seu processo – que passou a ser digital -, ela se desespera. “Quando tá carregando a página eu já fico rezando pra não ter ordem de recolhimento.” Na última audiência, a juíza lhe perguntou sobre seus desrespeitos às regras da prisão domiciliar: “não vou mentir não, doutora, eu tenho muita violação, porque não vou ficar passando fome dentro de casa com os meninos.”

A máscara protegeu da polícia

Para Fabíola*, de 38 anos, o mais difícil da maternidade nessas condições foi ter que ir às consultas de pré-natal com medo de ser presa, de alguém denunciá-la. “O juiz te restringe de um monte de coisa. Se fosse pela justiça, eu não estaria sendo mãe.” 

Ironicamente, o que favoreceu Fabíola, nesse período, foi o uso da máscara durante a pandemia de Covid-19. “Um vírus que veio e acabou me camuflando um pouco, porque tenho medo de ser presa na rua e deixar meus filhos em casa.”

Ela afirma que saiu do presídio com R$ 23 mil de multa penal determinada pelo juiz. “Se eu não saio pra fazer uma faxina, se eu não topo qualquer trabalho, não tenho o alimento, não pago meu aluguel.”

A filha de Fabíola estava com 17 anos, foi a pessoa autorizada a buscar o irmão mais novo, de 3 anos, na escola enquanto a mãe cumpria a pena. Mais tarde, a jovem aprendeu o ofício de manicure e passou a ajudar com as despesas atendendo clientes em casa. A mãe faz planos de um futuro diferente para o caçula: “Espero ainda dar um estudo pra ele ser o doutor da família.” 

Presa na frente dos filhos

Marisa*, de 39 anos, cumpria pena em regime domiciliar com tornozeleira há dois anos quando recebeu ordem de recolhimento do juiz por descumprir os horários estabelecidos. Isso foi em 2022, uma cena dolorosa que ela não esperava que se repetisse com a família em casa. É que, em 2017, sua prisão aconteceu na frente de seus quatro filhos à época, num completo desespero, já que a mãe era o sustento financeiro e emocional de todos. 

Até ser presa, ninguém sabia o que ela fazia para trazer dinheiro para casa. “Vivi o tráfico na rua. Com meus filhos eu era outra pessoa. Era mãe, carinhosa, dedicada.” Prova disso é uma carta da filha mais velha escrita durante a detenção: “se você não fosse uma mãe tão presente, a gente não estava sofrendo tanto.” Quem conta é Marisa, sem conseguir segurar o choro.

A mãe dela também foi sozinha, empregada doméstica, levada ainda criança de Minas Gerais para Brasília com a família dos patrões. Trabalhando no Setor de Mansões do Distrito Federal, ela teve Marisa, que presenciou a rotina de pessoas ricas e com poder: casa, motorista, piscina, fartura. Aos 9 anos, voltou com a mãe para Belo Horizonte, quando as duas passaram a viver com pouco, mas livres. 

Já adulta, começou a trabalhar para o tráfico de drogas com o desejo de dar à família mais do que o básico para viver, nas palavras dela. “E eu não tô falando de ostentar, até porque eu não sei o que é chegar numa loja e comprar um tênis caro.”

Foi presa pela primeira vez em 2002, pagou a pena e se afastou das drogas por 10 anos. Em 2016, enfrentou uma crise econômica e, sem emprego, se envolveu novamente com o crime. Acabou ficando mais três anos na penitenciária, e não viu a filha mais nova crescer. Durante os primeiros oito meses, ficou sem visitas e sem notícias dos filhos e da mãe. “Eu nem saía no sol, minha vida era só chorar, chorar, chorar.”

Se em Brasília ela viu como era ter praticamente tudo, na prisão aprendeu a  sobreviver sem quase nada. “Eu tinha três peças de roupa, só uma coberta. Ficava numa cela com cama, chuveiro, vaso, tudo junto, dividindo com um monte de mulher”, descreveu Marisa. 

No terceiro aprisionamento, ela descobriu que estava grávida da quinta filha. Retornou para o regime aberto após uma juíza constatar que ela não tinha histórico de indisciplina. Na virada de ano de 2022 para 2023, a família foi para a igreja e ela ficou em casa, cuidando da bebê nos limites da residência. 


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