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edgar morin

Edgar Morin é um homem com uma missão. Uma missão inacabada, inadiável, inescapável: transmitir suas ideias, compartilhar seus conhecimentos, oferecer o legado mais rico possível. A produção intelectual o mantém lúcido e alerta aos 101 anos. É o que o alimenta, conserva. Vê-se “possuído” diante de seu computador toda vez que encara um livro ou um artigo. Em seu livro Lições de um século de vida, confessa que não foi um bom filho e um bom pai. Não mau esposo, diz. Nem mau pensador.

É um sobrevivente de uma espécie em extinção: a dos grandes intelectuais do século XX. Escreveu mais de 20 livros (além de outros pequenos, entrevistas etc.) e, na França, acaba de publicar De guerre en guerre: de 1940 à l'Ukraine, um ensaio inconformista, “dissidente”, como ele próprio diz, alheio à corrente de pensamento que domina os meios de comunicação clássicos ocidentais, fazendo um claro apelo à paz na guerra que, desde fevereiro de 2022, sacode o mundo.

Em junho, pretende publicar outra obra, Encore un peu. E em setembro, para não baixar a guarda, mais um, coescrito com a mulher que o sustenta e lhe dá vida, Sabah Abouessalam, socióloga marroquina a quem está unido desde que se conheceram em uma conferência, no ano 2009.

Intelectual de referência para a esquerda francesa, inspirador (junto com Stéphane Hessel) para aqueles jovens que foram às praças do mundo, no ano do 15-M, este descendente de judeus sefarditas espanhóis (nascido como Edgar Nahoum) é um humanista que sempre gostou de intervir no debate público.

No campo do pensamento, é reconhecido pela publicação, entre 1977 e 2004, dos seis volumes de O Método, onde desenvolve as chaves do pensamento complexo, uma metodologia de reflexão multidisciplinar e panorâmica, alheia a compartimentos estanques.

Ele nos recebe em um de seus lugares favoritos de Marraquexe (vive entre Paris, Montpellier - sul da França - e a cidade marroquina), no Palácio Es Saadi, um recanto de pássaros e palmeiras transformado em hotel. O ar-condicionado de sua casa quebrou e precisou sair, pois o calor diminui suas forças.

O peso sobre os seus ombros dos 101 anos desaparece, repentinamente, quando o gravador é ligado. Começa a falar e resplandece. Irrompe o ímpeto na voz, um pouco embargada, e as mãos começam a acompanhar as inflexões em suas palavras.

A entrevista é de Joseba Elola, publicada por El País, 29-04-2023. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Inicia seu novo livro evocando os primeiros bombardeios da Luftwaffe que aniquilaram Roterdã, em maio de 1940. O senhor estava alistado ao Estado-Maior do Primeiro Exército, comandado por Lattre de Tassigny. O fato de ter vivido o horror da guerra o motivou a escrever mais um livro, com mais de 100 anos?

As imagens da guerra na Ucrânia, os prédios destruídos, os cadáveres de civis... Tudo isso me lembrou as guerras que vivi e em particular a Segunda Guerra Mundial. Naquele momento, vi cidades como Hamburgo, como Mannheim, completamente destruídas.

O senhor diz que qualquer guerra em nome do bem comporta, na realidade, o mal. É o que acontece na Ucrânia?

Sim, mas em um nível muito menos massivo. Embora a Rússia de Putin seja culpada por ter atacado e até tentado anexar a Ucrânia, há crimes de guerra que podem ter sido cometidos pelos dois lados, há propaganda de guerra dos dois lados. A guerra favorece as mentiras, a informação falsa, o ocultamento do que é negativo para um dos lados...

Quis que nossos contemporâneos estejam conscientes a esse respeito. Sobretudo porque na França, por exemplo, houve uma espécie de beatificação da Ucrânia, ao mesmo tempo em que são atribuídas intenções diabólicas a Putin.

As intenções de Putin não são diabólicas?

O que é diabólico em Putin, sobretudo, é sua repressão interna a seus opositores e a ditadura que mantém na Rússia. Está em meio a uma guerra, que evidentemente tem aspectos criminosos. Contudo, somos informados das ações dos russos pelos ucranianos. Existe uma névoa informativa.

Em seu livro, faz um claro apelo à paz, mas isto significa fazer concessões a um invasor, a Putin.

Quando as forças dos dois adversários estão igualadas, é possível alcançar acordos de compromisso. Em 2014, a Crimeia contabilizava no censo 1.400.000 russos, 500.000 ucranianos e 400.000 tártaros. Levando em conta a história e a demografia, seria possível buscar um acordo neste campo. Não está claro por que a Ucrânia pede um monopólio sobre a Crimeia, é possível buscar um compromisso.

Donbass é uma região extremamente rica em minerais que, no final do século XIX, começou a ser industrializada pela Rússia czarista. E foi a URSS de Stalin que a hiperindustrializou, sendo grande parte dos engenheiros e operários de origem russa. Seria possível conceber que as riquezas de Donbass foram exploradas em comum.

Concessões assim devem ser feitas?

Poderia ser uma solução de compromisso para obter a soberania da Ucrânia, sua adesão à União Europeia e sua neutralidade militar. Não devemos esquecer que os estadunidenses tiveram um papel fundamental em toda a cronologia que levou à guerra, com a expansão da OTAN. Há um novo imperialismo russo de caráter pan-eslavo, mas há também um imperialismo estadunidense que está presente de forma política, econômica e militar.

Ucrânia, em sua busca por independência e soberania, é o cenário de um conflito entre dois imperialismos. Com este livro, eu sabia que não estava no mainstream, sei muito bem que é dissidente nas circunstâncias atuais. E, mesmo assim, corri o risco, o risco de ser atacado. Você sabe, na França, imediatamente, rotulam como putiniano quem discorda...

Isso lhe preocupa?

Não gosto. Mas, meu dever é dizer o que penso ser útil. Estamos em uma época em que o pensamento maniqueísta e as alternativas simplistas se fazem passar por conhecimento e pensamento. E nas condições atuais, é cada vez mais difícil defender uma visão complexa das coisas.

Talvez retomemos o tema da guerra, mas, mudando de assunto, o senhor se diz herdeiro de Montaigne e Spinoza.

Sim, porque Montaigne aconselhava a prática da dúvida e do autoconhecimento. Tinha um espírito muito humano. Dizia: “Todo homem é meu compatriota”. É o primeiro anticolonialista. E Spinoza fez a grande revolução do pensamento moderno ao acabar com a ideia de um Deus superior e externo ao mundo, que é seu criador e dono. Deu a soberania criativa à natureza.

Permita-me uma pergunta, Sr. Morin: o que o senhor faz para manter tão bem suas faculdades intelectuais aos 101 anos?

Persevero em meu ser, como diria Spinoza. A idade me afeta, caminho pior do que antes, tenho diversos problemas físicos, mas, felizmente, mentalmente continuo o mesmo. Conservo toda a minha curiosidade, meu interesse pelo futuro da humanidade.

E como vê esse futuro?

Não acredito que estamos caminhando para um amanhã brilhante. O futuro é obscuro. Sei que muitas vezes o inesperado acontece na história, estou atento e vigilante. Contudo, estou muito angustiado pelo futuro da humanidade.

Em seu livro “Lições de um século de vida”, diz que é fundamental ter uma vida poética.

Não é possível viver poeticamente o tempo todo. A vida é uma luta entre prosa e poesia. A prosa são as coisas chatas, aquelas que você tem que suportar. A poesia é esse estado de encantamento, de comunhão, de gozo, o que te dá o amor pelo outro, a amizade coletiva, uma obra de arte... Cada um de nós deve tentar cultivar a parte poética da vida porque isso é viver. A outra é apenas sobrevivência.

O que mais te surpreende no modo de vida contemporâneo?

Nas grandes cidades, sobretudo, o anonimato. Em minha juventude, eu vivi uma época em que os vizinhos não só conversavam, como também se ajudavam, conversava-se com o balconista... Hoje, assistimos à destruição da convivência. Algo permanece, com os amigos, com a família.

Além do anonimato, estão presentes a robotização da vida, as obrigações cronometradas cada vez mais rígidas no trabalho... Tudo isso leva a uma degradação da civilização, do civismo e das relações humanas.

O senhor costuma dizer que em nossas sociedades está ocorrendo uma metástase do ego.

O individualismo moderno desenvolveu aspectos positivos, como a conquista da autonomia, mas também negativos, como o predomínio de si mesmo sobre os outros. Por um lado, o ser humano é egocêntrico: deve defender-se, alimentar-se e pensar em si; mas também é aberto aos outros, é comunitário, existe o amor... O egocentrismo deve ser reduzido ao mínimo vital de conservação. A fraternidade é algo capital.

Em uma entrevista a Nuccio Ordine, disse: “O desenvolvimento econômico capitalista desencadeou os grandes problemas de nosso planeta”. É por aí?

hegemonia do lucro está se manifestando em todo o mundo e está levando à degradação ecológica do planeta. Temos que resistir, buscando viver em um oásis de fraternidade e convivência, porque no momento não há uma força política capaz de criar uma nova política de civilização, uma via.

Neste ponto de sua vida, como você se define politicamente?

Eu me defino como um homem de esquerda. Contudo, desde minha ruptura com o comunismo, em 1951, sou independente de qualquer partido e quero continuar assim. Ser de esquerda significa tomar elementos de três fontes principais, e de uma quarta: do anarquismo, o indivíduo livre; do socialismo, uma sociedade melhor; do comunismo, uma irmandade humana. Essas três noções se separaram e se opuseram e, para mim, essas três noções devem estar associadas. A quarta é a relação com a natureza, que a ecologia nos ensina.

E como a esquerda deve se posicionar diante desse desenvolvimento econômico capitalista?

É preciso reverter a hegemonia do lucro em todos os âmbitos que seja possível. Na agricultura, deixar progressivamente a industrializada rumo a uma ecológica. É necessário recuperar o sentido da solidariedade. O neoliberalismo econômico tende a destruir os serviços públicos, é preciso dar-lhes vitalidade.

São necessárias reformas para transformar paulatinamente a sociedade porque, na minha opinião, a revolução não é possível, ao menos da forma como existiu, mais destrutiva do que construtiva. Penso na União Soviética e na China. Esta é uma missão coletiva progressista e, no momento, não há qualquer força política capaz de impulsioná-la.

Não observa em nenhum país uma força de esquerda que considere interessante?

Houve tentativas, mas duraram muito pouco e fracassaram, como o Equador do presidente Correa; no Chile, houve um impulso, mas não concluiu; no Brasil, houve elementos positivos, mas não funcionou.

O planeta vive um processo de regressão política generalizada: crise da democracia, regimes de fachada democrática e neoautoritários que se multiplicam... Não é só o caso da Rússia, Turquia e Hungria. Na Europa, existem outros países ameaçados, como a França.

Vê a França ameaçada?

Regressão econômica, crescimento das desigualdades, poder dos super-ricos, uma elite muito pequena, enquanto o resto do mundo empobrece... Estamos em uma ladeira perigosa.

E como acredita que essa batalha com Macron nas ruas e o aumento da idade de aposentadoria na França influenciam em tudo isso?

Penso que o movimento que se beneficiará com tudo isso será o Reagrupamento Nacional de Marine Le Pen, que se mantém à espera. Com a desintegração da direita clássica, a crise do macronismo, que era uma espécie de centrismo, e a crise da esquerda há o perigo de que nas próximas eleições o Reagrupamento Nacional, legalmente, chegue ao poder e estabeleça um poder neoautoritário.

Durante a pandemia, o senhor disse em uma entrevista: “Na minha idade, a morte está sempre à espreita. Por isso, é melhor pensar na vida e no que está acontecendo”. A morte é um tabu em nossa sociedade. O mesmo vale para alguém aos 101 anos?

Penso que esse tabu enfraqueceu um pouco. Quando escrevi O Homem e a Morte, em 1951, era um tema que parecia obsceno. Contudo, é verdade que quando se ultrapassa os 100 anos, chega-se a uma terra muito pouco conhecida e habitada, não há muitos centenários. É evidente que a proximidade da morte é permanente. É algo que pode me acontecer a qualquer noite, não se sabe.

Enquanto estou possuído pelas forças da vida, da participação, da curiosidade e da ação, o espectro da morte retrocede. No entanto, devo dizer que há momentos de vazio em que, bruscamente, me aparece. E digo a mim mesmo: é isto? É o destino, não só de todos os seres vivos, mas de tudo o que há no mundo, mesmo as estrelas morrem.

Às vezes, claro, a ideia de que meu eu desapareça me dá uma sensação de vazio, sinto a presença do nada. Contudo, não fico obcecado, são momentos. Estou muito mais focado nas forças da vida que seguem me animando.

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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/628363-temos-que-resistir-buscando-viver-em-um-oasis-de-fraternidade-e-convivencia-entrevista-com-edgar-morin


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