Por Thais Mauad, professora da Faculdade de Medicina (FM) da USP, e Maria Elisa de Paula Eduardo Garavello, professora da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP*


Thais Mauad – Foto: Arquivo pessoal
 

Maria Elisa de Paula Eduardo Garavello – Foto: Arquivo pessoal
 
 
Historicamente, temos observado uma dificuldade do Estado Brasileiro no enfrentamento da fome. Embora tenhamos conquistado direitos importantes, não se observou a inclusão de parcela significativa da população, que permaneceu em estado de pobreza e vulnerabilidade, sem fazer valer os direitos assegurados. Políticas públicas não foram capazes de resolver as necessidades dessas famílias, e têm sido insuficientes ou desconsideradas.

É nesse contexto que verificamos a presença importante da sociedade civil, tornando-se protagonista em ações no sentido de mudança desse cenário, particularmente com relação ao combate à fome.

A Pastoral da Criança, na década de 1990, é indicada como a mais bem sucedida iniciativa não-governamental no combate à desnutrição e à fome infantil, atingindo mais de um milhão de famílias por mês e mais de 150 mil voluntários. Também a Ação da Cidadania contra a fome (1993) liderada por Herbert de Souza, o Betinho, foi a que ganhou maior visibilidade, e culminou com a criação do Consea, numa ação incisiva de fazer o Estado assumir a responsabilidade sobre o problema.

Posteriormente, vamos observar a constituição de diferentes modalidades de organizações não governamentais que assumem para si a responsabilidade de lutar contra a fome, com a ideia de que esta não é apenas uma questão do Estado, mas que a sociedade pode contribuir com soluções adequadas.

A pandemia da infecção pelo sars-cov-2 em 2020 veio encontrar um Brasil em franca crise política e socioeconômica, com os níveis de insegurança alimentar aumentando desde 2017, majoritariamente por conta da redução de investimentos relacionados às políticas sociais nos anos recentes. A então chegada da covid-19 escancarou as desigualdades sociais e acentuou ainda mais a insegurança alimentar no Brasil. A política fiscal de teto de gastos do governo Michel Temer com retração em relação aos investimentos nos programas que asseguram a segurança alimentar e desmonte de políticas públicas federais acentuadas no governo Bolsonaro associados à diminuição de recursos para populações em vulnerabilidade e a incompetência administrativa dos quadros federais resultou numa das piores gestões da pandemia em âmbito mundial e culminou no aumento brutal da insegurança alimentar.

Tantos desmontes resultaram na ausência de resposta, ou respostas tardias para a fome durante a pandemia de covid-19 pelos órgãos públicos. É quando se observa, uma mobilização rápida e articulação dos mais variados setores da sociedade, nas mais variadas ações, para cuidar daqueles mais desassistidos. Em abril de 2020, um mês após decretada a pandemia, a plataforma PonteaPonte já contava com mais de 450 organizações da sociedade civil com ações de enfrentamento à pandemia.

Em resposta ao desmantelamento do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), à extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), e às crescentes violações de direitos socioambientais a sociedade civil criou a Conferência Popular Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN). Durante a pandemia foi elaborado um manifesto de 150 movimentos/ organizações com um conjunto de propostas de combate à fome a serem implementadas, em caráter urgente e emergencial, pelos governos nas esferas federal, estadual e municipal.

O setor empresarial e diversos segmentos de classes médias urbanas organizaram inúmeras iniciativas de doação direta de recursos financeiros, para fornecimento de alimentos, produtos de higiene e limpeza num caráter filantrópico a comunidades ou moradores de rua. Por exemplo em São Paulo, um grupo grande de pessoas, organizadas em volta da hoje instituída ONG o Amor Agradece passou a cozinhar em suas próprias casas durante a pandemia, distribuindo hoje cerca de 3.500 marmitas por semana, em 12 núcleos na cidade de São Paulo e Guarulhos, além de cobertores e artigos de higiene pessoal.

Em todo o território nacional um sem-número de iniciativas de auto-organização aconteceram em comunidades e bairros populares nas periferias de centros urbanos, ampliando iniciativas já existentes, mas constituindo um repertório de práticas inovadoras atualizadas. O exemplo de organização da favela Paraisópolis, na zona Sul de São Paulo, onde criatividade, solidariedade e decisões de lideranças locais em relação a distribuição de alimentos e cuidados médicos contribuíram para que a mortalidade nesta favela fosse a metade da mortalidade da cidade de São Paulo e um quinto da mortalidade da região periférica da zona Norte, a Brasilândia.

No estado de São Paulo, diversas iniciativas promoveram a aproximação entre a agricultura familiar agroecológica e comunidades necessitadas. Na cidade de São Paulo, a Frente Alimenta, conectou agricultores, inclusive urbanos, com cozinhas comunitárias da periferia fornecendo através de doações de empresas e indivíduos alimentos frescos, ajuda na montagem das cozinhas e formação de cozinheiras.

Situação semelhante acontece em Piracicaba com o Movimento Tô Aqui, movimento de financiamento coletivo de produção agroecológica, visando a insegurança alimentar na periferia da cidade, que surgiu durante a pandemia da covid-19, devido ao agravamento de dois cenários: agricultores familiares de base agroecológica, que encontraram dificuldades para comercializar os alimentos produzidos; e nas periferias, famílias que enfrentaram o agravamento da situação de vulnerabilidade. Envolve pessoas físicas e jurídicas, que apoiam o movimento tanto como voluntários como financeiramente.

Hortas urbanas têm um papel importante no combate à insegurança alimentar, provendo alimentos frescos, a preços acessíveis. A Horta da Faculdade de Medicina da USP tem doado semanalmente, durante a pandemia, ervas, temperos e folhagens para associações que cozinham para moradores de rua e atendem refugiados no centro da cidade de São Paulo, mostrando o potencial produtivo destes pequenos locais na malha urbana.

Outra iniciativa especialmente interessante de conexão entre comunidades, foi o Do quilombo para a favela, que surgiu entre as populações quilombolas do Vale do Ribeira. Antes da pandemia, a Cooperativa dos Quilombos do Vale do Ribeira – Cooperquivale, fornecia alimentos para as escolas, por meio do PNAE, e também para prefeituras. Durante a pandemia a Cooperquivale e parceiros criaram um plano emergencial de captação de recursos para a distribuição de alimentos para famílias vulneráveis, que permitiu a entrega de 20 toneladas de alimentos /mês para cinco municípios, entre eles a favela San Remo, da periferia de SP.

Vale ressaltar o trabalho do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra que doou desde o início da pandemia sete mil toneladas de alimento em todo o Brasil, além da venda de alimentos a preço de custo e doação de sementes, mostrando o papel fundamental que tem a agricultura familiar na segurança alimentar no Brasil, em detrimento do modelo extensivo do agronegócio.

Enfim, observa-se que as múltiplas iniciativas da sociedade civil organizada em todo o país foram muito importantes para a manutenção da segurança alimentar em comunidades desprovidas, exibindo alto grau de solidariedade, criatividade e inovação social. Que tais iniciativas possam ser entendidas e incorporadas por gestores públicos na construção de políticas de inclusão e segurança alimentar a partir de então.

Membros do GT USP “Políticas Públicas de Combate à Insegurança Alimentar e à Fome”
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fonte: https://jornal.usp.br/artigos/acoes-civis-contra-a-fome/


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