Marco Zero percorreu quase 1.100 quilômetros pelos sertões e litoral do Rio Grande do Norte para conhecer o que está acontecendo no cotidiano de algumas comunidades que convivem com os problemas criados pelo modelo brasileiro de produção de energia eólica

 
 
 

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo.

Durante a campanha presidencial deste ano, por pouco a discussão sobre fontes de energia renovável não foi ignorada pelos candidatos a presidente do Brasil, até que, no último debate entre Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro na Rede Globo, o assunto mereceu atenção, mesmo que superficial. Com frases pré-fabricadas, ambos tentaram assumir a paternidade da transformação da matriz energética no país. O atual presidente tentou demonstrar interesse pelo tema dizendo que o Nordeste iria “ser um oásis para a geração de energia eólica”. Lula, por sua vez, lembrou que foi em seu governo que se instalou o primeiro parque eólico do país, no Rio Grande do Sul.

O tema, porém, merece ser abordado com mais cuidado. Afinal, em várias regiões do Nordeste, as torres de geração energia eólica mudaram não apenas a paisagem, mas também a realidade de milhares de pessoas. E nem sempre para melhor.

Por isso, a Marco Zero percorreu quase 1.100 quilômetros pelos sertões e litoral do Rio Grande do Norte para conhecer o que está acontecendo no cotidiano de algumas comunidades que convivem com os problemas criados pelo modelo brasileiro de produção de energia eólica. 

A escolha do Rio Grande do Norte não foi aleatória. Pioneiro no processo de instalação dos empreendimentos eólicos no país, o estado nordestino conta com 222 parques de geração de energia em operação – sem contar outros 145 em construção – e atualmente é responsável por gerar 30% da energia eólica nacional (6,8 gigawatts de um total de 22,5 gigawatts)

Baixo impacto?

É inegável que a geração de energia renovável é fundamental para a diminuição dos danos ambientais causados pela emissão dos gases poluentes de origens fósseis, como o petróleo e o carvão. No entanto, há duas expressões que são associadas aos empreendimentos de energia eólica no Brasil e que vem sendo questionadas por cientistas, entidades não-governamentais e sociedade civil por não refletirem a realidade enfrentada pelas comunidades que convivem com essas estruturas: “energia limpa” e “baixo impacto ambiental”. 

Na tentativa de entender quais foram os impactos negativos que a instalação dos parques eólicos causou em diferentes territórios, a reportagem da Marco Zero saiu do Recife e viajou até o Rio Grande do Norte para visitar três cidades que enfrentam as consequências de fazer parte da próspera “rota dos ventos”. 

O primeiro destino da nossa viagem foi a comunidade de Enxu Queimado, um distrito localizado no município de Pedra Grande. Após seis horas de estrada, notamos que estávamos nos aproximando de nossa primeira parada, pois a paisagem foi se modificando e começou a ser tomada por aqueles que seriam protagonistas nessa história: os aerogeradores de energia eólica. Iniciamos a travessia do município de João Câmara, a aproximadamente 60 quilômetros da nossa primeira parada, e, a partir daquele ponto, passamos a avistar centenas de torres eólicas pertencentes a diferentes parques de diversas empresas, nacionais e estrangeiras. 

Após chegar à cidade de Pedra Grande, pegamos uma estrada de barro e percorremos mais 10 quilômetros até a praia de Enxu Queimado. Os aerogeradores não eram a única coisa peculiar na paisagem. Diferente do litoral pernambucano, a vegetação do litoral potiguar parece ora com a caatinga ora com praia tropical, onde o calor e o ar seco se misturam aos ventos e à maresia, com cactos crescendo em meio às dunas. 

Mais tarde eu iria entender que, antes, havia muito mais cactos próximo às áreas de dunas, pois hoje muitas delas estão tomadas pelos aerogeradores e divididas pelas cercas instaladas pelas empresas. As cercas, aliás, também chamaram bastante atenção a partir daquele momento da viagem: elas estão por toda parte, prolongando-se por grandes extensões de terra.

A primeira parada

Em Enxu, fomos recepcionados por Leonete Roseno, uma das integrantes da Colônia de Pescadores. Ficamos hospedados em uma pousada simples, mas muito aconchegante, do simpático David, que nos esperou com um belíssimo peixe frito para o almoço, pois em seu estabelecimento também funciona um restaurante. Enfim, estávamos na comunidade pesqueira, distrito de um município que, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), possui 3.163 habitantes.

Durante nossa estadia foi possível notar a movimentação de carros e funcionários das empresas de energia na cidade, que costumam ir até Enxu para realizar as refeições, principalmente o almoço. A maioria eram homens jovens, entre 30 e 40 anos. No resto do tempo, o ambiente em Enxu é bastante calmo e, antes das 20h, já não é mais possível ver pessoas nas ruas ou nas calçadas de suas casas, afinal a maior parte dos moradores passa a madrugada e o dia pescando, por isso precisam dormir cedo. Poucos são aqueles que aguentam ocupar os poucos bares da cidade para assistir a jogos de futebol, jogar sinuca e tomar cerveja com os vizinhos. 

Rua estreita de paralelepípedos, com pequenas casas de alvenaria, sem jardim, onde se vê três mulheres caminhando pelo lado esquerdo da rua e uma galinha preta atravessando a via. Ao fundo, por trás dos postes com fios elétricos, se vê silhuetas e hélices de vários aerogeradores. Moradores de Enxu Queimado convivem com os aerogeradores há mais de dez anos. Foto: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo.

 

Por ser uma comunidade que não faz parte do circuito do turismo do litoral do Rio Grande do Norte, Enxu Queimado não possui estrutura para turistas, apesar das belas paisagens no entorno. O restaurante de seu David é o único no local que funciona diariamente, mas só conta com dois quartos para hospedagem, construídos há pouco tempo. 

No entanto, a chegada dos empreendimentos eólicos na região mudou completamente o cotidiano das pessoas que vivem na comunidade pesqueira. Além de modificar a paisagem local, promovendo desmatamento e aterramento das dunas, impactou o modo de vida das pessoas cercando e isolando uma área extensa que era utilizada para agricultura e criação de poucas cabeças de gado para subsistência. A visibilidade e a valorização dos terrenos provocadas pela chegada dos negócios de energia renovável acelerou a especulação imobiliária que tende a fechar ainda mais o cerco às comunidades tradicionais do território. 

Especulação imobiliária e assédio 

Foi em 2007 que os moradores de Enxu Queimado começaram a ter de lutar pelo direito às terras em que viveram durante toda a vida. Naquele ano, um italiano, até então desconhecido pela comunidade e depois identificado como Marcello Giovanardi, apareceu no povoado alegando ter comprado Enxu Queimado. Ele simplesmente exigiu que os moradores que possuíssem propriedades no distrito procurassem o cartório para assinar um documento que certificava a efetivação da compra e cedia legalmente as terras para ele. 

 

A investida não deu muito certo, como contou Maria Joelma Martins, líder da Colônia de Pescadores: “A população de Enxu Queimado não aceitou e, além de não assinarem os documentos, os habitantes derrubaram as cercas que ele havia instalado. Depois disso, o gringo sumiu”. 

Porém, 13 anos depois, quando a comunidade já havia passado por todos os impactos causados pelas instalações das empresas eólicas, que teve início em 2011, e em meio a um período crítico da covid-19 no Brasil, Giovanardi voltou. Como da primeira vez, retomou o assédio aos moradores reivindicando as terras que ele alegava ter comprado. 

“Em 2020, no auge da pandemia, ele (o italiano) já chegou com tudo mapeado, e disse que tinha todos os dados das nossas casas, e sabia até quantos móveis e cômodos tinham em cada uma delas. Ele pediu para que a gente procurasse o cartório porque já estava tudo certo pra fazer a regularização e queria que a gente pagasse pelas terras”, contou Leonete Roseno. O italiano queria até cobrar pelos serviços do levantamento, que não tinham sido solicitados.

Além do pânico causado pela covid-19, os moradores da comunidade também tiveram que lidar com a intimidação constante de Giovanardi, que, se tornou mais presente e passou a intensificar a pressão sobre as famílias: “Muitas mulheres ficaram com problemas de saúde por medo, muito nervosas e ansiosas. Até um barraco foi queimado”, desabafou Leonete. 

O barraco citado pertence a Ramiro Alves, que, junto com Leonete Rosendo e Francisca Suely, enfrenta um processo judicial contra a empresa representada por Marcello Giovanardi, a Teixeira Onze Incorporações Ltda. A ação judicial em questão pede a suspensão do processo de reintegração de posse, concedido pelo juiz da comarca de São Bento do Norte, à empresa Teixeira Onze. Giovanardi aparece no processo como representante da empresa, mas a firma está no nome das sócias Izaelma e Islania Teixeira.

De acordo com o advogado que representa os moradores da Enxu Queimado, Gustavo Freire, a empresa tem dificuldades de provar a posse das terras que nunca foram ocupadas por ela. “Esse tipo de ação tem o objetivo de reaver uma posse que deixou de existir porque o posseiro foi expulso de suas terras e deseja retomá-las. A questão é que para ter a posse das terras, o posseiro precisa provar que havia ocupado ela antes, pois só tem direito às terras quem faz uso dela, mesmo que não seja proprietário”, explicou o advogado. 

Em abril de 2021, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte manteve suspensa a reintegração de posse pretendida pela Teixeira Onze, que ainda pode recorrer. No entanto, para Gustavo Freire, a empresa estaria em uma situação difícil, já que “pedir a reintegração de uma posse que nunca existiu é pedir de volta algo que não é e nunca foi seu”.

Apesar das conquistas favoráveis no processo judicial, há um problema que pode dificultar a vida dos moradores da comunidade pesqueira e que tem preocupado o advogado: residentes estão recebendo propostas para regularizar suas posses por meio de escritura pública. Em tese, isso é uma ótima ação, mas abre precedentes para que as propriedades possam ser negociadas e vendidas pelo melhor (leia-se menor) preço a empresas como a Teixeira Onze. “É importante lembrar que tudo começou graças a uma pessoa que quer comprar uma terra que já diz ser sua”, afirmou Freire.

Um negócio muito estranho

É possível que o leitor ou leitora esteja se questionando como um italiano pode ter se tornado dono de terras no litoral do Rio Grande do Norte. De acordo com uma nota de esclarecimento emitida pela Comarca de São Bento do Norte (a íntegra deste documento está disponível logo abaixo) e assinada pelo tabelião de Pedra Grande, José Nilton Barbosa da Silva Souza, a empresa Teixeira Onze se tornou proprietária do imóvel denominado Canto de Baixo mediante a compra realizada em 2007. Na ocasião, a então herdeira e dona das terras, a advogada recifense Dulce Maria Queiroz Leite, vendeu a propriedade de 144,57 hectares por R$ 60 mil. 

Apesar da empresa alegar ser proprietária de vastos terrenos e um distrito inteiro à beira-mar, as duas sócias Islania e Izaelma são donas do pequeno salão de beleza Fios de Flor, no bairro de Petrópolis, em Natal. Um estabelecimento comercial de porte acanhado para quem, em tese, comanda uma empresa que compra e vende lotes de terra em áreas valorizadas. Apesar do italiano Giovanardi aparecer como representante da Teixeira Onze, a recepcionista do salão Fios de Flor informou que ele é marido de Islania e procurador responsável pelos negócios da empresa.

Procurado por WhatsApp para se posicionar a respeito do conflito, Giovanardi alegou que não teria tempo para responder antes da publicação desta reportagem. “Somente no final da próxima semana”, explicou em mensagem. O espaço permanecerá aberto caso ele ou as sócias da empresa queiram expor sua versão.

Meses antes, quando o TJ-RN tomou a primeira decisão favorável aos moradores, Marcelo Giovanardi chegou a enviar para a imprensa potiguar uma “nota de esclarecimento” na qual reafirma que, “primeiramente vamos repetir que há 13 anos adquirimos estes terrenos e que nunca derrubamos nenhuma casa ou parede de qualquer casa da área urbana. Não fizemos isso ontem, não vamos fazer hoje, nem amanhã. Como estamos falando há muito tempo, a empresa Teixeira Onze está fazendo a própria parte querendo regularizar junto a prefeitura a cidade inteira de Enxu-Queimado”. A transcrição manteve os erros de português e de informação (como, por exemplo, se referir ao distrito de Enxu Queimado como cidade) do texto original.

Na ação judicial, a empresa apresentou outro documento para comprovar a posse do terreno, um recibo da compra da propriedade, onde o total da área é maior do que aquela citada anteriormente. No documento, o terreno comprado apresenta um total de 184,766 hectares. A diferença nos documentos foi uma das justificativas apresentadas pelo juiz para suspender o processo de reintegração solicitado pela incorporadora. 

De acordo com os pescadores e pescadoras, Marcello Giovanardi dizia pretender construir um resort em uma área localizada em um ponto crucial para a comunidade pesqueira. “Ele reivindica uma área que é conhecida como área de expansão, que é o único território para onde o distrito ainda pode crescer e também é o local onde os pescadores passam para fazer a pesca quando a maré está alta, com uma área de lazer que é usada pela comunidade. Tem um pessoal que cria umas cabeças de gado e planta nesse local também”, contou a líder da Colônia, Maria Joelma Martins. 

Quando a comunidade parecia ter virado a página do conflito com a Teixeira Onze e o italiano, outra empresa surgiu se dizendo dona de terrenos e anunciando que vai cercar a área de expansão citada por Maria Joelma. Trata-se da Genipabu Hotel e Turismo, administrada pelo francês Patrick Daniel Muller e a brasileira Ana Maria Muller, que também está movendo uma ação judicial de reintegração de posse na comunidade pesqueira de Enxu Queimado. Muller também é dono da Atlantis, operadora de turismo que promover mergulhos em Fernando de Noronha.

A área de reintegração solicitada pelo negócio turístico é uma propriedade rural de 14,442 hectares. O terreno pertencia ao agricultor Garibaldi Chianca de Carvalho e sua esposa Tânia Lídia de Souza Carvalho, ambos moradores do Recife, e foi vendido pelo valor de R$ 300 mil à empresa Genipabu Hotel e Turismo.

A população ficou sabendo da existência dessa empresa quando Leonete Roseno recebeu uma intimação para se defender em um processo no qual a empresa reclama de “Esbulho/Turbação/ Ameaça”. Utilizando vídeos de reuniões promovidas pela comunidade, Leonete tem sido acusada de ser responsável por instigar e promover conflitos nas terras. A ação está em tramitação na Vara Única da Comarca de São Bento do Norte. 

Resistência das mulheres

Em nossa visita a Enxu Queimado, conseguimos reunir um grupo de pescadoras e pescadores para ouvir relatos do que viveram com os processos judiciais que enfrentam desde 2007. O protagonismo das mulheres foi evidente desde o início, já que além de serem a maioria presente na reunião, foram delas as falas mais marcantes, expressando com propriedade os movimentos realizados para garantir a posse das terras dos moradores da comunidade.

A fim de barrar os planos dos estrangeiros, um grupo de mulheres, a maioria pescadoras e/ou esposas de pescadores, montou um comitê para pedir apoio de organizações governamentais e não-governamentais na luta em defesa do território.  “No início era mais gente, a maioria mulheres, e nós nos articulamos junto com a Secretaria de Estado do Desenvolvimento Rural e da Agricultura Familiar (Sedraf). Foi assim que começou a nossa batalha”, relembrou Maria Joelma Martins. 

Mulher negra, de cabelos lisos presos em rabo de cavalo, com olhos apertados e rosto sério, usando camiseta rosa. O fundo da foto está desfocado.
Maria Joelma, pescadora e atual presidenta da colônia de pescadores Z32 de Enxu Queimado. Foto: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

 

“Como pode uma comunidade que existe há mais de 100 anos de repente ser vendida para outra pessoa? Uma pessoa que não mora nem aqui? Não podíamos deixar isso acontecer”, declarou Francisca Suely Oliveira ao comentar sobre o que teria motivado a mobilização das mulheres. 

“Quando começamos o movimento para pedir apoio, muitas pessoas, da própria comunidade, duvidaram da gente. Disseram que nós não éramos nada e não íamos conseguir nada. Fomos até ofendidas por pessoas que achavam que estávamos atrapalhando o progresso de Enxu Queimado”, finalizou Francisca.

Contrariando o que parte dos moradores da comunidade esperavam, a mobilização deu tão certo que, atualmente, o grupo de pescadoras de Enxu Queimado se tornou um exemplo de luta na defesa do território e passou a integrar o Fórum de Mudanças Climáticas. No Rio Grande do Norte, a comunidade é vista pelos movimentos sociais e por autoridades públicas como protagonista nas ações de diálogo institucional sobre os impactos causados pela instalação de empresas de energia renovável em territórios pesqueiros. 

Agora, apesar de ainda enfrentar o medo e a insegurança, as mulheres comemoram os desdobramentos positivos da luta. “Nós falamos para o mundo todo, mostramos o que está acontecendo no nosso território e somos reconhecidas pela nossa luta. Estamos conseguindo garantir aos moradores o que é deles por direito: a escritura pública de suas propriedades”, declara, com orgulho, Leonete. 

Além de não assinar os documentos apresentados pelo representante da Teixeira Onze e levar o caso até a Justiça, integrantes do comitê decidiram ocupar a área de expansão que está sendo exigida pelas duas empresas erguendo um acampamento no local. As caiçaras montadas no terreno são pequenas e frágeis, feitas com madeira e palha, e servem como ponto de apoio para a pescaria e nos dias de lazer. E há razão para essa escolha, pois a vista é privilegiada e o local é sossegado, frequentado pelos bois e vacas que pastam aos pés das dunas.

As cercas e as ilusões das eólicas

Na manhã do dia seguinte à reunião, quando fomos visitar o acampamento instalado na expansão do terreno exigido pelas empresas imobiliárias, foi possível ter dimensão da área cercada do parque eólico União dos Ventos, da empresa Serveng Energia, que está instalada em Enxu desde 2011. A cerca ultrapassa os limites do terreno para manter a segurança junto aos aerogeradores e ocupa uma área na beira do mar. 

“Eles (empresários das eólicas) quando chegaram aqui fizeram reuniões com a comunidade e foi toda aquela propaganda muito bonita. Disseram que íamos transitar normalmente nas áreas dos parques, que poderíamos criar gado e que os produtores rurais seriam beneficiados. Também prometeram um serviço social maravilhoso, porque tudo que eles pudessem fazer pela comunidade eles fariam. Mas a realidade é que não fizeram absolutamente nada”, acusou Maria Joelma Martins. 

“Proibiram a circulação de qualquer pessoa dentro dos parques eólicos, você não pode circular sem permissão. Por isso, é tudo cercado”, resumiu a líder da Colônia. 

Os pescadores e pescadoras lembram saudosos como era a vida antes da chegada do empreendimento eólico na comunidade. “Nossa tradição era correr nas dunas, buscar azeitona e tomar banho nas lagoas que se formavam entre as dunas, além de plantar e colher nas matas e várzeas. Mas a nossa área verde acabou. Eles passaram um ano inteiro só desmatando e destruindo os morros de areia para construir os parques”, contou um dos pescadores presentes na nossa reunião. 


O povoado é praticamente todo cercado pelas cercas dos parques eólicos. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

 

Perguntados sobre os benefícios que os parques eólicos trouxeram para a comunidade, a resposta dos pescadores e pescadoras foi unânime: nenhum. Além de perderem uma grande área de natureza e terem seu território cercado, os moradores explicaram que continuam pagando as contas de energia com valores altos, afinal, “o que é produzido de energia renovável não fica aqui, vai tudo pra fora, aqui é só pra extrair e destruir”. 

Desde a instalação dos parques, os moradores também perderam o sinal de celular e precisam de conexão Wi-Fi para manter contato através das redes sociais digitais. “Antes funcionava normalmente, mas agora só funciona na base da empresa porque eles instalaram uma antena lá”, afirma Francisca Suely. A geração de empregos impulsionada pelos empreendimentos eólicos também não se cumpriu: “eles contratam no momento da construção dos parques, mas depois poucos ficam na empresa, a maioria foi demitida depois que a construção acabou”, disse a pescadora Francisca Suely. 

A ameaça offshore

Com suas terras cercadas pelos empreendimentos eólicos e ameaçadas pela especulação imobiliária, os pescadores e pescadoras de Enxu Queimado devem enfrentar um novo desafio: lutar para não perder o direito à pesca. Isso porque a comunidade deve ser uma das primeiras áreas do Brasil a receber os parques de geração de energia offshore

Em maio de 2022, as representantes da Colônia de Pescadores participaram de uma audiência pública para discutir o processo de instalação dos parques offshore. Na ocasião, uma informação causou apreensão: o projeto que foi apresentado ao Governo do Rio Grande do Norte e às prefeituras indica que os geradores de energia offshore ficarão localizados a apenas cinco quilômetros de distância da costa. 

“Nós estamos com medo do impacto que os offshore podem trazer porque nós somos uma comunidade pesqueira tradicional e dependemos da pesca artesanal, não da pesca industrial. Nós precisamos da costa livre, porque navegamos a menos de nove quilômetros metros de distância da praia, usamos canoas de pequeno porte”, afirmou Maria Joelma Martins. 

“A promessa é sempre a mesma: que vai trazer renda e emprego para as pessoas da comunidade. Dessa vez nós ouvimos que os offshore vão gerar 300 empregos, mas isso não é suficiente para uma comunidade que tem mais de duas mil pessoas”, completou Leonete Roseno. 

A impossibilidade de pescar mudaria completamente a vida dos moradores de uma comunidade onde 260 famílias são associadas à Colônia de Pescadores. Além de impactar a economia local, a inviabilidade da pesca de subsistência pode levar boa parte da comunidade a viver em insegurança alimentar. Durante a nossa estadia na cidade, por exemplo, nos alimentamos de frutos do mar que tinham sido pescados poucas horas antes, uma prática comum e cotidiana para os habitantes.


Foto aérea de praia com vasto terrenos de areia, coberto por vegetação rasteira de restinga. Em primeiro plano, na porção inferior da foto, estão duas pequenas cobertas das quais se vê praticamente apenas os telhados. Ao fundo, dezenas de aerogeradores sobre dunas em terra firme e, no mar, as silhuetas de dezenas de vários barcos ancorados próximos à praia. Foto: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

 

Para entender os possíveis impactos dos parques a serem instalados no mar, procuramos quem pesquisa o tema. 

Uma dessas pessoas é Heitor Scalambrini, doutor em Física e integrante da Frente por uma Nova Política Energética para o Brasil (FNPE). Ele nos explicou que ainda não há estudos recentes e aprofundados sobre os danos que os parques offshore podem causar e detalhou como funciona o sistema de geração de energia renovável: “os parques offshore estão sendo discutidos dentro de um contexto mundial para pensar a produção de hidrogênio e utilizá-lo como uma fonte de energia para substituir o gás de combustíveis fósseis, que é muito utilizado na Europa em sistemas de aquecimento das casas”

“O que está se propondo é utilizar a tecnologia para produzir hidrogênio através da eletrólise, uma corrente elétrica que passa na água e separa o hidrogênio do oxigênio. Essa corrente elétrica é produzida através de sistemas de eletrólise instalados no mar”, elucidou Scalambrini. 

Quanto à preocupação dos pescadores com a circulação no mar, em áreas próximas aos parques offshore, Scalambrini enfatizou que, “com certeza vai haver uma limitação na circulação das pequenas embarcações por questões de segurança. A gente tem visto acontecer aqui no Nordeste alguns acidentes com as torres que estão instaladas na superfície terrestre, hélices que se desprendem e caem, torres que pegam fogo. Então, o distanciamento dos barcos dos parques offshore é uma medida de segurança que deverá ser tomada”.

Em agosto de 2022, a Comissão de Infraestrutura do Senado aprovou o projeto do marco regulatório para a exploração de energia em alto-mar no Brasil. O PL 576/2021 estabelece a concessão do direito de uso de bens da União para geração de energia a partir de empreendimentos offshore. O projeto, de autoria do senador Jean Paul Prates (PT-RN), tramita em regime de prioridade e aguarda votação pelo plenário da Câmara dos Deputados. O Rio Grande do Norte deve ser a região pioneira na instalação dos offshore, assim como foi dos parques de energia eólica instalados em terra firme, uma vez que representantes do Governo do Estado já assinaram uma carta demonstrando interesse em receber os empreendimentos e as zonas para as instalações já foram delimitadas. 

De acordo com Heitor Scalambrini, a pretensão do governo estadual, com a concessão de áreas para a instalação do negócio, é “transformar o Rio Grande do Norte em um centro de produção de hidrogênio e amônia, que é um subproduto possível de ser extraído também através da tecnologia dos offshore, e é muito utilizado no agronegócio”. 

A sensação das moradoras de Enxu Queimado é que a comunidade pesqueira  ficará cercada por todos os lados, inclusive no mar, para que os empreendimentos de energia renovável continuem sendo expandidos no Rio Grande do Norte. 

Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte (Idema) explicou o processo de licenciamento dos empreendimentos de produção de energia renovável offshore encontra-se sob “delegação do Ibama”. Na verdade, a legislação que regulará esse tipo de parque eólico ainda está para ser aprovado pelo Congresso Nacional, conforme veremos na próxima reportagem sobre o tema.

 

Próxima parada: reserva ambiental Ponta de Tubarão

Não é só Enxu Queimado que sofre as consequências negativas da expansão desenfreada dos grandes sistemas de geração de energia renovável. No município de Macau, localizado a 124 quilômetros de distância de Enxu, os pescadores também enfrentam os desafios ambientais, econômicos e sociais instaurados pelas eólicas. O impacto ambiental se torna ainda mais grave, pois acontece na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Estadual Ponta do Tubarão, área que deveria ser preservada e conservada pelos órgãos de fiscalização. 

Macau foi a segunda etapa de nossa viagem pelo Rio Grande do Norte.

 

fonte: https://marcozero.org/a-luta-das-pescadoras-cercadas-por-parques-eolicos-e-especuladores-no-rio-grande-do-norte/

 


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