Uma das fundadoras da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, doutora em Ciências Sociais, completa 80 anos, com trajetória marcada pela incansável luta política pelos direitos de meninas e mulheres.
No dia 13 de novembro de 2017, centenas de mulheres se reuniram na Av. Paulista, em São Paulo, para protestar contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 181/15, que visava criminalizar todas as formas de aborto e representava um enorme retrocesso no campo dos direitos reprodutivos. Uma mulher se destacou na multidão ao levantar uma placa cuja frase ecoaria por muito tempo nas lutas feministas: “Até Maria foi consultada para ser mãe de Deus”. Seu nome é Maria José Fontelas Rosado Nunes, ou simplesmente Zeca Rosado.
Crédito: Acervo Católicas Pelo Direito de Decidir.
Maria José Rosado nasceu em 14 de abril de 1945, em Caxambu, cidade turística, histórica, localizada no Sul de Minas Gerais, na região da Serra da Mantiqueira. Seus pais eram proprietários de um hotel nessa cidade, onde passou a questionar os abismos sociais entre as pessoas que se hospedavam no estabelecimento e a população pobre da região.
Ela, então, juntou-se ao Movimento Estudantil Católico – JEC – Juventude Estudantil Católica. Aos 18 anos, decidiu entrar para a Vida Religiosa, instalando-se em um convento, onde passou a estudar com outras freiras. Alguns anos depois, fez uma Graduação em Língua e Literatura, na Faculdade de Itajubá, em Minas Gerais.
Seu desejo de trabalhar com a população mais carente levou-a do trabalho como professora em colégios de sua Congregação religiosa, para Barra do Mendes, no interior da Bahia. Lá, fez amizade e uma Novena de Natal junto a trabalhadoras do sexo – população marcada pela exclusão e por inúmeras vulnerabilidades.
Dois anos depois, foi para o interior do Acre, onde morou em uma pequena cidade de nome Quinari, posteriormente mudado para Senador Guiomard, onde atuou em comunidades ribeirinhas, em uma região também marcada por conflitos e violências.
Em 1984, tornou-se mestra em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ano em que se tornou a primeira freira a discursar de forma crítica sobre o lugar das mulheres na Igreja Católica em um Seminário Nacional de Mulheres e Política.
Cada vez mais crítica aos posicionamentos hegemônicos da Igreja Católica sobre os direitos das mulheres, decidiu deixar a Congregação Religiosa; deixou de ser freira. Em 1985, foi para a Europa, concluiu um segundo Mestrado na Bélgica e depois, para Paris, onde, em 1991, concluiu seu doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris.
Gênero e Religião: a trajetória acadêmica
Para além das ações desenvolvidas em comunidades vulneráveis, Maria José Rosado construiu, ao longo das décadas, uma consistente produção acadêmica e intelectual que a tornou uma das principais pesquisadoras, no Brasil, sobre o cruzamento das questões feministas e de gênero com a religião; as discussões sobre o lugar e o papel das religiões em sociedades modernas e democráticas; e as permanências e transformações do Catolicismo.
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Autora de dezenas de artigos, entrevistas, livros e capítulos de livros publicados dentro e fora do país, suas obras mais conhecidas são “Vida religiosa nos meios populares” (1985), “Palavras de Mulheres: juntando os fios da teologia feminista” (2000), escrito com Beatriz Melano Couch, além de “Violência simbólica: a outra face das religiões” (2010), escrito com Maria Teresa Citeli.
Atualmente, Maria José Rosado é pesquisadora do CNPq e professora aposentada da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde fez parte do Colegiado e foi representante docente da Faculdade de Ciências Sociais junto ao Conselho Universitário (Consun).

Fundou, na PUC/SP, o grupo de pesquisa Grepo – Gênero, Religião e Política, certificado pelo CNPq. Em 2021, foi nomeada, pelo estudo AD Scientific Index (Alper-Doger Scientific Index), uma das 10 mil docentes mais influentes das Américas.
O surgimento de Católicas pelo Direito de Decidir
Maria José foi responsável por fundar o primeiro movimento feminista cristão do Brasil: o grupo Católicas pelo Direito de Decidir. No dia 8 de março de 1993, Dia Internacional de Luta das Mulheres, em São Paulo, ela e outras ativistas feministas deram início a esse movimento no Brasil, iniciado na América Latina, por Cristina Grela, feminista uruguaia.
A Red Latinoamérica y del Caribe de Católicas por el Derecho a Decidir, atualmente, está presente em pelo menos dez países da região e busca promover e defender os direitos das meninas e mulheres – sobretudo aqueles relacionados à sexualidade e à reprodução humana, o que inclui o direito a realizar de forma legal segura a interrupção de uma gravidez não planejada ou indesejada – a partir de uma perspectiva ética, católica e feminista, baseada nos argumentos do pensamento teológico católico.
No Brasil, Católicas pelo Direito de Decidir surge com o objetivo de promover mudanças na sociedade, especialmente nos padrões culturais e religiosos, tendo em vista que as religiões devem contribuir para que as pessoas tenham uma vida digna e saudável – e não dificultar sua autonomia e liberdade, principalmente em relação à sexualidade e à reprodução.
A imagem marcante do cartaz erguido na Av. Paulista, em 2017 – “Até Maria foi consultada para ser mãe de Deus” –, é a síntese de uma trajetória marcada pela coragem, pela fé e pela defesa intransigente da justiça social e dos direitos humanos.
A história de Maria José Rosado foi construída a partir de uma articulação entre religiosidade, pesquisa e militância, em que as experiências vividas em comunidades vulneráveis se somaram a uma produção intelectual sólida. Com sua atuação, demonstrou que a fé pode ser aliada da justiça social e que os discursos religiosos também podem (e devem) ser ressignificados à luz das demandas feministas.
O legado de Zeca Rosado, portanto, permanece como referência incontornável para todas aquelas pessoas que acreditam na possibilidade de uma fé comprometida com a justiça social e reprodutiva.