Com menos golpes militares e mais mudanças nas regras eleitorais, América Latina vive onda de retrocesso democrático; pesquisa cria banco de dados e propõe correção de estudos sobre regimes políticos
Jornal da USP - Publicado: 17/02/2025 às 8:00
Texto: Tabita Said
Arte: Beatriz Haddad*
O artigo, publicado no Journal of Politics in Latin America, propõe novos indicadores para marcar as etapas da transição democrática e também em condições em que uma democracia passa a ser considerada um governo autoritário, mesmo que as eleições não sejam eliminadas. O trabalho oferece ainda dados atualizados sobre transições de regime nos 19 países da região no período de 1946 a 2022.
Para Lorena Barberia, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e pesquisadora do Núcleo de Estudos Comparados e Internacionais (Neci), ambos da USP, a contribuição central do trabalho é a definição de regras mais objetivas para avaliar como se dão as eleições iniciais e quais são as condições pelas quais as democracias nascem. Além do Neci, o artigo conta com pesquisadores do Departamento de Ciências Política da Academia da Força Aérea dos Estados Unidos e da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
“Estão chamando de democracias países que não são democráticos”, afirma Lorena Barberia – Foto: Lattes
“Um exemplo de prática que leva uma democracia a se reverter em um governo autoritário é quando se manipula as leis eleitorais estabelecidas constitucionalmente ou de outra forma para permitir que o governante consiga concorrer com regras eleitorais diferentes das quais ele entrou no governo. Estão chamando de democracias muitos países que, de fato, não são democráticos”, afirma a cientista política.
A pesquisadora explica que vários dos índices que medem regimes políticos, considerados bons instrumentos para mensurar a qualidade da democracia, descrevem a Venezuela como democrática. “Mas, se a gente começa a pensar retrospectivamente o que aconteceu, identificando o momento em que existe uma quebra nas regras eleitorais, isso marca o momento que para trás, todo o período desde o início do governo Chávez, em 1998, a Venezuela se torna autoritária”, diz. A pesquisa aponta que a alteração de leis para garantir a reeleição de governantes ou de líderes do Congresso é a principal marca da desdemocratização, enquanto ceder o poder para a oposição é a característica fundamental de uma democracia observada na América Latina nas últimas décadas.
“É saudável ter ganhadores e perdedores, e que eles saibam ceder para quem ganhou nas urnas. Como a gente sabe, no caso brasileiro, isso não foi tão tranquilo na eleição de 2022”, lembra Barberia. Segundo ela, há um fator decisivo para entender o risco das democracias não se manterem resilientes: “O questionamento do resultado eleitoral e a resistência a ceder o poder após uma eleição representam, hoje, uma ameaça muito mais importante do que golpes militares. E explica por que estamos vendo reversões em vários governos na América Latina”.
Transição democrática
Outra questão discutida no trabalho é como se avalia a capacidade da democracia continuar evoluindo em sua transição democrática. Para identificar com maior precisão a duração das fases de transição democrática na América Latina, os pesquisadores desenvolveram um conjunto de dados denominado DDRLA – Democracy and Dictatorship Reprise for Latin America ou Retomada de Democracia e Ditadura para a América Latina, em português – para 19 países na região.
A pesquisa mostrou que uma recessão democrática crítica estava em andamento na década de 2000 na Bolívia, Equador, Honduras, Nicarágua e Venezuela, chegando-se em reversões de regimes democráticos para autoritários em mais de um em cada quatro países da América Latina. Destes casos de reversão, todos, exceto Honduras, foram desencadeados pelas ações do titular eleito para estender seu governo além dos dois mandatos atribuídos. “A boa notícia é que Bolívia, Equador e Honduras conseguiram realizar eleições competitivas após períodos prolongados de governo autocrático”, afirmam os pesquisadores.
“A gente mostra que as eleições iniciais nem sempre resultam em uma democracia, e algumas vezes uma democracia nasce sem uma eleição inicial”, diz Barberia ao Jornal da USP. “E a segunda medida que a gente produz é essa que chamamos de ‘transição democrática’, que é quando ganhou a primeira vez um governo que cedeu para a oposição; essa primeira vez, a gente considera o primeiro ano da democracia”.
A preocupação dos pesquisadores permeia a ideia de que a democracia não está dada como garantida, mas sim em constante tensão. Os cientistas destacam que o fato de regimes autoritários cederem poder a oposições democráticas – resultando na realização de eleições – é insuficiente para classificar um regime como democrático. No entanto, identificam que quando eleições competitivas iniciais são permitidas, aumenta a probabilidade de que as transições para a democracia se enraízem com sucesso.
Como exemplo bem sucedido, o trabalho cita o caso do Brasil com as eleições de 1985, que foi seguida por um longo período de democracia de 1986 até o presente. Já a Venezuela se tornou vulnerável, mesmo com a experiência acumulada de mais de cinco décadas de regime democrático com alternâncias de poder entre opositores.