Agricultora paraibana assumiu a causa em defesa dos trabalhadores rurais após a morte do marido, João Pedro, e virou símbolo de luta e resistência
Três dias de festas estão programados para comemorar o centenário de Elizabeth Teixeira, viúva do líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado a mando de fazendeiros paraibanos em 2 de abril de 1962. A morte de seu companheiro se tornou símbolo de resistência e luta pela terra, justiça social e reforma agrária e fez de Elizabeth uma liderança dos trabalhadores rurais muito perseguida durante o regime militar. Sua história foi resgatada pelo cineasta Eduardo Coutinho, no documentário Cabra Marcado para Morrer, a exemplo do que Walter Salles Junior viria a fazer em Ainda Estou Aqui, com a história de Eunice Paiva, viúva de Rubens Paiva, morto em dependências do Exército na década de 1970 (leia crítica abaixo).
Elizabeth Altina Teixeira nasceu em 13 de fevereiro de 1925, na comunidade de Antas do Sono, então município de Sapé, na zona da mata da Paraíba. Filha mais velha de Altina Maria da Costa, de origem latifundiária, e de Manoel Justino da Costa, de família de pequenos proprietários de terra, desde jovem, demonstrou inconformismo com as injustiças do campo. Após a morte de João Pedro, ela assumiu a presidência da Liga Camponesa de Sapé e, depois, da Liga no Estado, dando continuidade às lutas por trabalho digno, reforma agrária e justiça no campo.
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Presa várias vezes em atos pela reforma agrária, perseguida pela ditadura e por jagunços, teve que ir para a clandestinidade. Para fugir da perseguição, adotou um nome falso e ficou escondida por 17 anos. Elizabeth teve de entregar os 11 filhos a parentes e amigos durante os anos de perseguição. No próximo dia 13, porém, todos os seus familiares e amigos estarão juntos, no Festival da Memória Camponesa do Sapé, quando será lançada a exposição Elizabeth Teixeira: 100 faces de uma mulher marcada para viver.
A celebração de seu centenário conta com apoio do governo federal, governo da Paraíba e da Prefeitura de Sapé, além do engajamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST). As ligas camponesas foram associações de trabalhadores rurais criadas inicialmente no estado de Pernambuco, posteriormente na Paraíba, no antigo estado do Rio de Janeiro, em Goiás e em outras regiões do Brasil. Exerceram intensa atividade no período que se estendeu de 1955 até a queda de João Goulart, em 1964. Ao lado de Francisco Julião, seu fundador, João Pedro era um dos principais líderes das ligas camponesas, das quais se tornou o maior símbolo, após sua morte.
O filme Cabra Marcado para Morrer, documentário de Eduardo Coutinho, conta essa história. Começou a ser filmado em 1964 e só foi concluído em 1984, quando Elizabeth foi reencontrada pelo cineasta.
Na tarde de 2 de abril de 1962, João Pedro foi emboscado e assassinado. Seguia a pé pela estrada entre Sapé e a cidade vizinha de Mari, onde participaria de uma reunião da Liga Camponesa, quando foi surpreendido pelos pistoleiros, que dispararam vários tiros contra ele. Teixeira morreu no local, sem chance de defesa. O crime foi planejado para eliminar sua influência e enfraquecer a organização dos trabalhadores rurais.
Duas Mulheres, duas ausências, um mesmo drama
Por Lilia Lustosa, crítica de cinema, especial para o Correio Braziliense
Recentemente, o jornalista Xico Sá analisou nosso candidato ao Oscar 2025, Ainda Estou Aqui (2024), de Walter Salles, e traçou um paralelo entre sua protagonista Eunice Paiva e Elizabeth Teixeira, a protagonista de Cabra Marcado Para Morrer (1964-1984), obra-prima do saudoso Eduardo Coutinho. Duas obras impactantes que giram em torno de duas mulheres, duas ausências e suas drásticas consequências.
Eunice e Elizabeth. Duas viúvas de uma mesma fatalidade. Ambas privadas da presença de seus companheiros de vida, assassinados pelos desmantelos de um sistema de extremos, de um (des)governo que sabia muito bem aonde queria chegar, não se preocupando com os meios para atingir seus fins.
Eunice é a esposa do Deputado Federal caçado do PTB, Rubens Paiva. Elizabeth é esposa de João Pedro Teixeira, um dos fundadores das Ligas Camponesas na Paraíba. Ambos assassinados por defenderem direitos humanos básicos, a liberdade e a terra. O primeiro, morreu em 1971, em pleno período de chumbo da ditadura, e o segundo, em 1962, dois anos antes de estourar o golpe. Dois crimes que passaram impunes e que foram soterrados para que a verdade e a vergonha não viessem à tona.
Eunice Paiva é a grande estrela do momento. Saiu do anonimato e tornou-se exemplo de resiliência, determinação e força, graças à brilhante atuação de Fernanda Torres, que a interpreta em Ainda Estou Aqui, e também, claro, à excelência do roteiro e da direção do filme, que, por sua vez, é baseado no também magnífico livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens Paiva.
Elizabeth Teixeira é a luz de Cabra Marcado Para Morrer, documentário feito em duas etapas, interrompido pela ditadura militar em plena fase de realização e que teve nosso conterrâneo velho de guerra, Vladimir Carvalho, em sua equipe. Um longa que, além de ser o maior filme de Coutinho, traz em si as marcas físicas da censura, impregnado que está pelas digitais dos desaparecidos. Elizabeth, na ocasião, teve de fugir, esconder-se e espalhar seus onze filhos pelo território brasileiro. Uma “heroína nacional”, como bem sublinha Sá, e que ainda segue na luta, completando no próximo dia 13, cem anos de vida, data em que receberá uma homenagem do MST em Sapé, Paraíba.
Duas grandes histórias, dois grandes filmes, muito diferentes em sua poética, mas que retratam de forma igualmente brilhante a ausência imposta à vida de duas mulheres "comuns". Viúvas que, de uma hora para outra, tiveram as vidas desconstruídas, enxergando a fuga como a única salvação para seguir adiante. Mães de família que tiveram de assumir as rédeas da casa, da vida e do destino dos filhos a fim de sobreviver. Guerreiras que seguiram lutando, cada uma à sua maneira, para que a batalha travada por seus maridos não fosse em vão.
Cabra Marcado para Morrer foi lançado em 1984, ainda na ditadura. E por isso mesmo, não fez o estardalhaço que faz hoje Ainda Estou Aqui, que já arrebatou alguns prêmios importantes e que tem a chance de redimir seu companheiro de 64/84 e mostrar ao mundo o que acontecia no Brasil daqueles tempos. Histórias tantas vezes negadas ou apagadas, mas que urgem ser contadas para que jamais se repitam.
Em Ainda Estou Aqui, o foco, porém, não é a ditadura, que aparece mais como pano de fundo. A lupa é colocada em Eunice, em seu humanismo, em sua sensibilidade, sua dor, sua força e na luta interna que teve de travar para seguir tocando a vida “normalmente”, de modo a não prejudicar a família. E esse é o grande acerto do filme: tocar em uma ferida que não é só de Eunice, nem de Elizabeth, mas que é também a de muitas Marias e Clarices espalhadas por aí. Uma escolha nada óbvia, que foge do esperado, que desvia do melodrama, do choro fácil, da pieguice e que se fortalece pela excelência do elenco, pela beleza da fotografia, pela justeza da reconstituição história, convertendo-se desde já em um verdadeiro clássico.
Cabra Marcado Para Morrer e Ainda Estou Aqui trazem a marca de tantas mulheres que tentaram e ainda tentam preservar a memória deste país e por isso mesmo precisam ser assistidos, analisados e debatidos em todas as esferas da sociedade brasileira.
Elizabeth Teixeira terá sua trajetória em longa paraibano
Filme sobre a líder camponesa foi um dos dez projetos selecionados no Edital Ruth de Souza de abrangência nacional

Elizabeth Teixeira, uma das maiores líderes camponesas do Brasil, completa 100 anos no próximo dia 13 de fevereiro. - Foto: Kátia Dumont.
No mês em que se comemora o centenário de Elizabeth Teixeira, um dos maiores nomes da luta camponesa no Brasil, a produtora paraibana Carambola Filmes inicia a produção do longa-metragem Quem é Elizabeth?, sobre a vida da “mulher marcada para viver”. Em fase de roteirização, o filme vai levar para o cinema a trajetória de um símbolo de resistência que completa 100 anos no próximo dia 13 de fevereiro.
Leia: Centenário de Elizabeth Teixeira acontece de 13 a 15 de fevereiro em Sapé (PB)
É bom lembrar que depois do emblemático Cabra Marcado para Morrer, que trata do assassinato do líder João Pedro Teixeira, e de A Família de Elizabeth, que faz um reencontro da então viúva de João Pedro com os filhos – ambas obras do documentarista Eduardo Coutinho – este será o primeiro longa totalmente dedicado a Elizabeth.
De Sapé, interior paraibano onde surgiram as Ligas Camponesas (que chegaram a chamar atenção internacional), a história de Elizabeth tomou rumos que ela jamais imaginaria. Trazer tantas memórias à tona é contribuir para a história que precisa ser vista e contada, sobretudo num país que necessita saber de suas verdades.
“Realizar uma cinebiografia de uma personagem como Elizabeth Teixeira é um convite a mergulhar na história das lutas sociais brasileiras e um desafio excitante, principalmente, porque o tema é muito latente ainda no Brasil. Sabemos que temos uma história de grande potencial dramático e, ao mesmo tempo, poética e apaixonante sob vários aspectos”, afirmou Drica Soares, produtora executiva da Carambola Filmes.
A ideia de levar a vida de Elizabeth para o cinema nasceu há quase dez anos, quando a jornalista Kátia Dumont, trabalhando numa emissora local, entrevistou Elizabeth. Depois da entrevista, ela não teve dúvida: muita gente precisava conhecer a vida daquela lutadora.
“Falar de Elizabeth é falar de uma vida atravessada pela violência no campo e a violência do Estado. Violência que a afetou profundamente e a toda sua família”, afirma Kátia, roteirista e pesquisadora do longa.
Elizabeth Teixeira. / Foto: Kátia Dumont.
O projeto terá como diretora Inês Figueiró, que tem ampla atuação no cinema brasileiro. Ela é codiretora da série Travessia, do CineBrasil TV, e está como uma das roteiristas do premiado “Era o Hotel Cambridge”, de Eliane Caffé. Nesses mais de 15 anos como roteirista, ela se debruça sobre a corajosa trajetória da líder paraibana.
“É fundamental levar ao público a história das nossas heroínas, das mulheres corajosas que mostram a força da voz e da ação feminina na sociedade brasileira. Elizabeth é uma dessas grandes mulheres e é uma honra poder estar nesse projeto”, afirmou.
O longa “Quem é Elizabeth?” pretende responder à pergunta do título. Elizabeth não só assumiu a luta no campo quando João Pedro Teixeira foi assassinado, como viu sua vida completamente transformada com a chegada da Ditadura Militar em 1964. Ameaçada de morte, precisou fugir. E, por 17 anos, viveu na clandestinidade no interior do Rio Grande do Norte, na companhia de dois dos seus 12 filhos.
Na casa onde mora, em João Pessoa, comprada por Eduardo Coutinho com a bilheteria de “Cabra Marcado para Morrer”, Elizabeth mantém o olhar de coragem e o sorriso de esperança. Quando ouve a palavra “luta”, aos 99 anos, sustenta: “É preciso que a luta continue, que tenha reforma agrária para que o povo tenha seu pedaço de terra para plantar, colher e cuidar de sua família, de seus filhinhos”. É emocionante.
O filme é uma produção da Carambola Filmes e foi contemplado no edital federal Ruth de Souza 2023, cujos recursos são do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), voltado a obras dirigidas por mulheres cis ou transgênero estreantes e apresentadas por meio de produtoras brasileiras independentes.
Além da seleção no edital Ruth de Souza, o projeto da cinebiografia de Elizabeth Teixeira foi selecionado para outros ambientes de desenvolvimento e ampliação. Entre eles, o Laboratório de Desenvolvimento de Projetos Audiovisuais (W.R_LAB): Módulo Longa-Metragem, da Fundação Cultural de João Pessoa (Funjope) e Prefeitura Municipal de João Pessoa, em 2020, e da Mentoria em Roteiro “Paradiso Multiplica”, em 2022, uma parceria do II W.R_Lab e do Projeto Paradiso.
*Colaboradora do BdF-PB
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Edição: Carolina Ferreira
Cem vezes viva: a travessia de Elizabeth Teixeira
Roberto Amaral*
“João Pedro, [você] por mais de uma vez me perguntou se eu daria continuidade à sua luta, e eu nunca te dei minha resposta. Hoje eu te digo, com consciência ou sem consciência de luta, eu marcharei na sua luta, João Pedro, pro que der e vier.” (Elizabeth Teixeira, 1962)
O Nordeste continuava herdeiro de Canudos, cumprindo a sina de miséria e fome traçada pelos donos da terra, que não aceitavam vê-la dividida, nem seu povo organizado, uma gente sem eira nem beira que só podia ter serventia no eito, cavando o solo calcinado, de onde brotavam a riqueza e a prepotência do patrão.
A seca matava de um lado, o latifúndio de outro.
No início dos anos 1960, o Nordeste de miséria naturalizada ameaçava a paz da ordem natural do poder. Despertava a atenção, agora, quando a violência em seu paroxismo se deparava com a resistência de camponeses. Emergem na Paraíba e em Pernambuco as “Ligas Camponesas”, passa-se a falar na questão agrária, instala-se o que a repressão e a imprensa irão chamar de “conflito no campo”; o tema se politiza, chega à universidade, aos púlpitos, aos sindicatos, às tribunas dos parlamentos, mobiliza o movimento estudantil, empolga, divide, acentua divergências, põe a nu o conflito de classe, e a violência de uma ordem que reproduz a exploração secular do capital sobre o trabalho.
O sistema se assusta, a repressão se aparelha, o Estado cria organismos de intervenção no processo social, cuidando de atalhar o conflito mediante o desenvolvimento regional. Em 1952 é criado o Banco do Nordeste e em 1959 a Sudene, e Celso Furtado dá início à sua guerra contra as estruturas arcaicas. A autovisão do país muda, e muda sua percepção do Nordeste como problema. O discurso compreende agora o anacronismo da estrutura agrária, o mandonismo dos “coronéis” de baraço e cutelo, a exploração do Estado pelo patrimonialismo, o reacionarismo anti-desenvolvimentista da classe dominante.
João Goulart é presidente da República e o país fala em “reformas de base”, dentre elas a reforma agrária, o fantasma que vai assustar o sono da classe média; Francisco Julião, advogado das Ligas Camponesas, é eleito deputado federal em 1962, Miguel Arraes assume o governo de Pernambuco e faz usineiros se sentarem à mesa ao lado dos trabalhadores rurais, no Palácio das Princesas, para firmar o Acordo do Campo, um fato novo na luta pelo reconhecimento dos direitos humanos dos camponeses. O país mudava, era todo efervescência: discutia e debatia; buscava traçar ele próprio seu destino desde a rebelião civil de 1961, a Campanha da Legalidade comandada por Leonel Brizola, impedindo o golpe militar de 1961 (um trovão prenunciando a tempestade de 1964).
O país mudava porque se mobilizava. Se mobilizava em todos os sentidos e em todos os quadrantes, à direita e à esquerda. Mobilizavam-se o sistema e a repressão, mobilizava-se e crescia a violência do latifúndio que elegera como meta limpar os sertões da “praga” das Ligas Camponesas, expulsando da terra os camponeses que a elas aderissem, espancando os mais renitentes e simplesmente matando seus líderes, que para isso é que servem a polícia a serviço da terra e o trabuco dos jagunços. João Pedro Teixeira não se surpreendeu com- as ameaças, nem mesmo se assustou com as prisões e os espancamentos: sabia, sem medo mas sem bravaria, do alvo que se tornara desde 1955, quando organizou o Encontro dos Camponeses de Sapé (PB), ponto de partida para o nascimento das Ligas camponesas, mobilizando e politizando os trabalhadores rurais. Os fâmulos de ontem, Severinos destinados a ser eternamente Severinos na terra alheia, serviçais no corte da cana ou no caldeirão da usina, transformavam-se em sujeitos ativos de direitos. A dignidade do trabalho se associava ao pleito pela reforma agrária, que soava como música aos ouvidos dos progressistas.
As Ligas se espalham por todo o Nordeste e sobrevivem, como podem, ao combate ferrenho do latifúndio e de seus servidores: a polícia, o judiciário, a imprensa, os intelectuais orgânicos da direita; para a polícia e a chamada “elite” econômica são células de agitação rompendo com a paz do campo; seus dirigentes são agitadores comunistas a serviço de Moscou, financiados por Cuba. A repressão não conhece limites. Na tarde do dia 2 de abril de 1962, em uma emboscada, o latifúndio tirou a vida de João Pedro Teixeira, com três tiros de fuzil, pelas costas. Pedro já era um líder em todo o Estado, e seu assassinato provocaria grande revolta. Ao seu enterro, registram os jornais de João Pessoa, acorrem cerca de cinco mil pessoas.
(Por esse então a União Nacional dos Estudantes (UNE), uma entidade de massas, percorria o país, visitava as universidades, promovia atos políticos, apresentava shows e encenava peças teatrais. Com a diretoria viajava seu Centro Popular de Cultura, o CPC, liderado por Oduvaldo Vianna Filho e Carlos Estevão Martins. Os dirigentes da UNE eram Aldo Arantes, Marco Aurélio Garcia, Clemente Rosas Ribeiro e eu. Fomos ter em Sapé, município da zona da mata paraibana, naquele fevereiro/março de 1962, e participámos de grande concentração popular, em homenagem ao líder assassinado. Penso que nas filmagens desse ato Eduardo Coutinho começava a conceber seu Cabra marcado para morrer. Foi nessa contingência que conheci Elizabeth Teixeira, e me lembro dela como uma mulher ainda jovem, magra de aparência frágil, mas irradiando vida. Voltaria a vê-la, muitos anos passados, na companhia de Silvio Tendler; nós a entrevistávamos para programa político que produzíamos para um partido então de esquerda. Era a mesma mulher. Silvio relembra a beleza de seu depoimento).
Viúva de Pedro, Elizabeth, que já se destingira pela sua capacidade de liderança, assume a presidência da Liga Camponesa de Sapé e, na sequência, a presidência das Ligas da Paraíba, função que ocupará até 1964. Amplia a integração dos camponeses à resistência, dobrando o número de associados, e, reforçando a participação das mulheres, cria novas Ligas. Em 1964, aos 39 anos, perseguida pelos militares e pelos latifundiários, é trabalhadora sem terra, mulher de vida severina, viúva, carregando 11 filhos.
Com a chegada do golpe militar em Sapé, morrem os cabras marcados para morrer: são assassinados Nego Fuba (João Alfredo Dias) e Pedro Fazendeiro (Pedro Inácio de Araújo), companheiros de Pedro Teixeira. São os primeiros. Elizabeth é presa e conhece a cadeia por oito meses; sua casa é incendiada. Sabe o que está marcado como seu destino, mas ainda a aguardam muitas dores ignoradas. Ao suicídio de sua filha de apenas 18 anos, atormentada com o assassinato do pai e a prisão da mãe, seguem-se os assassinatos de dois filhos, José Eudes Teixeira e João Pedro Teixeira Filho. À mercê do imponderável, resolve salvar-se para preservar o que lhe resta de família. Abandona a Paraíba, troca de nome (é agora Marta Maria da Costa); seguindo o destino de seu povo errante sai pelo mundo comendo estrada e poeira, trabalhando aqui e ali para sobreviver, ora como empregada doméstica, ora como lavadora de roupa em beira de rio, ora alfabetizando crianças, correndo da política e da polícia, que no sertão andam juntas.
Afinal, fugindo e se escondendo do mundo (por quase 20 anos!), exilada do mundo, desaparecida embora viva, desgarrada, tida então como morta, logra reunir-se com o restante da família, reencontrada por seus filhos Abraão e Carlos e o cineasta Eduardo Coutinho, que em 1984 lançaria Cabra marcado para morrer, documentário – hoje célebre – dedicado ao martírio de Pedro Teixeira, mas que na verdade é a história de Elizabeth e o milagre de sua vida.
Passaram-se sessenta anos do assassinato de João Pedro Teixeira, 61 do golpe de 1º de abril, 41 do filme de Eduardo Coutinho e 37 da promulgação da “Constituição cidadã”... e seguimos tendo cabras marcados para morrer, como bem sabem os sem terra, os indígenas e os quilombolas.
No próximo dia 13 deste fevereiro, Elizabeth Altino Teixeira, mulher brava e forte, marcada para resistir e viver, completa 100 anos de uma trajetória que há de seguir inspirando, e educando-nos para a luta.
Os genocidas – Indiciado por crimes de guerra, Benjamin Netanyahu foi a Washington entrevistar-se com seu contraparte estadunidense, recentemente condenado por estupro e investigado por fraude, conspiração e obstrução da justiça. Na ocasião, Donald J. Trump expeliu uma declaração que faz o escândalo do Watergate – que custou, lá trás, a cabeça de Richard Nixon – parecer brincadeira de criança: ignorando solenemente tudo o que se conhece como Direito Internacional, afirmou que os EUA irão assumir o controle da Faixa de Gaza, apropriando-se daquele pedaço de terra. Não bastante isso, os dois criminosos reafirmaram seu compromisso com a limpeza étnica da região, que atravessa décadas, ao afirmar que os palestinos de Gaza terão de viver fora da terra que lhes pertence. A proposta explicitamente genocida e racista evidencia – embora evidências já se acumulassem – que a brutalidade extrema do enclave sionista armado e financiado pelo imperialismo, chocante para qualquer ser humano, nunca consistiu na “autodefesa” invocada por seus apoiadores, mas sim numa guerra colonial, de conquista.
Fez bem o presidente Lula em repudiar de pronto o absurdo. Resta saber se a dita comunidade internacional permanecerá como vem se portando desde o início do genocídio: mantendo uma inércia cúmplice diante dos crimes que acompanha em tempo real.
A ubiquidade do complexo de vira-latas – O congresso brasileiro retomou suas atividades nesta semana, e a imprensa registrou que o plenário da Câmara foi palco de uma "batalha dos bonés": aos bonés vermelhos que extremistas de direita usaram e usam para exprimir sua fidelidade canina a Trump e ao Partido Republicano, parlamentares governistas responderam envergando bonés da cor azul do partido de Joe Biden. Não é possível, porque seria desanimador, admitir que essa Câmara dos Deputados, pela sua composição majoritária, seja representativa do nosso povo. Vivos fossem, Barbosa Lima Sobrinho e Ulysses Guimarães, estariam desesperados. Cronistas da vida cotidiana como Nelson Rodrigues e Stanislaw Ponte Preta, por outro lado, fariam a festa com o ridículo nosso de cada dia. E é melhor rir do que chorar.
Ainda o complexo – É comovente a preocupação dos conglomerados de mídia brasileiros com o desenvolvimento tecnológico da China, e a presteza com que alertam sobre supostos riscos associados à ferramenta DeepSeek – parecendo esquecer a pletora de abusos imputados às Big Techs dos EUA, agora instaladas na Casa Branca. No entanto, é curioso que nossos baluartes da liberdade sequer ericem as sobrancelhas com a notícia de que, na gestão Trump, a equipe do magnata Elon Musk está tendo livre acesso aos dados de pagamentos do Tesouro estadunidense. Como diriam Noel Rosa e Francisco Alves: onde está a honestidade?
A seletiva compaixão da classe dominante – No último domingo (06/02), o Fantástico(“O show da vida”), revista eletrônica campeã de audiência da onipresente Rede Globo, dedicou algo como dez minutos de sua caríssima grade a comovida defesa de petsabandonados. Que frutifique sua campanha em defesa da vida e do bem-estar de totós e bichanos, pois eles merecem. Nenhuma palavra, porém, foi cogitada sobre as multidões de miseráveis, homens, mulheres, velhos e crianças, os chamados moradores de rua (ou, mais elegantemente, sem-teto, ou, ainda mais elegantemente, homeless), milhares de trapos humanos, famintos, famélicos, imundos, doentes, que povoam nossas cidades, atulhando as calçadas, disputando o lixo com as ratazanas. Na capital paulista são 90 mil pessoas em “situação de rua”; no Rio de Janeiro, quase 8 mil. E a miséria humana não para de crescer.
Uma chamada que diz (quase) tudo – “Múcio avisa Planalto que fica na Defesa por mais tempo” (O Globo, 06/02/2025, p. 6).
* Com a colaboração de Pedro Amaral
Elizabeth Teixeira faz 100 anos: festival em Sapé (PB) celebra trajetória de resistência e luta
Entre os dias 13 e 15 de fevereiro, cidade paraibana será palco do Festival da Memória Camponesa

Entre os dias 13 e 15 de fevereiro de 2025, Sapé, na Paraíba, será palco do Festival da Memória Camponesa, evento que homenageia o centenário de Elizabeth Teixeira, símbolo das Ligas Camponesas e ícone da luta pela reforma agrária no Brasil.
A organização do evento é liderada pelo Memorial das Ligas e Lutas Camponesas, que mobiliza movimentos sociais, organizações, e representantes do campo e da cidade. A celebração busca preservar o legado de Elizabeth, reconhecida como referência de resistência e justiça social desde a morte de seu companheiro, João Pedro Teixeira, também militante e fundador da Liga de Sapé.
O Festival da Memória Camponesa é mais do que uma homenagem: é um convite à reflexão e à ação coletiva pela reforma agrária, justiça social e dignidade dos trabalhadores rurais. Ao celebrar Elizabeth Teixeira, o evento reafirma a importância da memória, da organização e da persistência na luta por direitos e pela transformação social.
História
Nascida em 13 de fevereiro de 1925, na comunidade de Antas do Sono, em Sapé, Paraíba, Elizabeth Altina Teixeira tornou-se um ícone da luta camponesa no Brasil. Filha de Altina Maria da Costa, de origem latifundiária, e Manoel Justino da Costa, de família de pequenos proprietários, Elizabeth enfrentou desde cedo o peso das expectativas sociais. Seu pai desejava um primogênito homem, mas ela desafiou as convenções e, ainda jovem, demonstrou indignação diante das injustiças contra os trabalhadores rurais.
Em 1940, conheceu João Pedro Teixeira, trabalhador negro e evangélico que atuava em uma pedreira local. O relacionamento, marcado pela resistência do pai de Elizabeth, consolidou-se em uma união que transformaria a luta pela terra no Brasil. João Pedro tornou-se uma liderança central das Ligas Camponesas de Sapé, organização criada nos anos 1950 para combater os abusos do latifúndio.
Após o assassinato de João Pedro em 1962, em uma emboscada orquestrada por adversários da reforma agrária, Elizabeth assumiu a liderança das Ligas Camponesas, ampliando a participação feminina e fortalecendo a organização. No entanto, o golpe civil-militar de 1964 trouxe perseguições e forçou Elizabeth à clandestinidade por 17 anos em São Rafael, Rio Grande do Norte. Sob nova identidade, ela se dedicou à alfabetização de crianças, mantendo viva a luta camponesa.
Em 1981, com a ajuda de seus filhos, Elizabeth foi reencontrada pelo cineasta Eduardo Coutinho, que retratou sua história no documentário Cabra Marcado para Morrer. Desde então, Elizabeth consolidou-se como símbolo da resistência e da memória das lutas camponesas no Brasil.
Hoje, a antiga casa de sua família em Barra de Antas, Sapé, abriga o Memorial das Ligas e Lutas Camponesas, um espaço dedicado à preservação das histórias e resistências dos trabalhadores do campo.
Programação
13 de fevereiro: O dia será reservado ao reencontro de Elizabeth Teixeira com familiares e amigos e ao lançamento da exposição Elizabeth Teixeira: 100 faces de uma mulher marcada para viver. O evento ocorrerá no Memorial das Ligas e Lutas Camponesas e será restrito a familiares e convidados.
14 de fevereiro: A Marcha da Memória Camponesa marcará o segundo dia do evento, com percurso da Capelinha João Pedro Teixeira até o Memorial. Além da abertura oficial da exposição, apresentações culturais enaltecerão a resistência camponesa.
15 de fevereiro: Encerramento do festival com a Feira Cultural da Agricultura Familiar Camponesa, promovendo produtos da reforma agrária e diálogos sobre a luta pela terra. O dia será finalizado com um ato político na Praça de Sapé, com a participação de autoridades e atividades culturais.
Haverá ainda uma área de acampamento disponível. O acampamento convida a celebrar a memória, a luta e o legado de Elizabeth Teixeira, reafirmando o compromisso com a reforma agrária, a justiça social e a dignidade dos trabalhadores e trabalhadoras do campo.
Informações importantes:
O acampamento estará disponível a partir das 17h do dia 13/02 (quinta-feira) e seguirá até o dia 15/02 (sábado), no Memorial das Ligas e Lutas Camponesas.A contrapartida solidária para os participantes é de R$ 75,00 por pessoa.
Leve sua barraca, colchão, lençol, kit militante (prato, copo e talheres) e itens de higiene pessoal. Refeições inclusas.
Inscrições para o acampamento da Memória Camponesa serão recebidas via formulário até 25/01/2025.
Fonte: BdF Paraíba
Edição: Cida Alves
