Quase lá: Precarização e estigma contra as camgirls

O virtual estabeleceu-se como ambiente de serviços sexuais mediados por plataformas. Agora, de forma unilateral, empresas alteram contratos e prejudicam profissionais com bloqueio de contas e pagamentos – e ampliam sua informalidade

 

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Publicado 18/09/2024 às 15:35

Arte: Reprodução/Repórter Brasil

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Por Carolina Bonomi e Cristiane de Melo, especial para a Ponte

O que aconteceria se a Uber ou o iFood não pagassem os entregadores durante sete dias? Imagine então se esses mesmos trabalhadores fossem impedidos de trabalhar, perdessem acesso às suas contas e não pudessem sacar os valores que ficaram lá retidos. Parece absurdo? Mas é o que está acontecendo com criadoras de conteúdo sexual da maior plataforma de transmissão ao vivo do Brasil.

No dia 2/9, a Camera Prive alterou seus termos de uso, incluindo em suas cláusulas, entre outras coisas, o impedimento de que criadoras transmitam simultaneamente em outras plataformas. Entretanto, antes mesmo da divulgação das alterações, no dia 30/8, criadoras já relataram o bloqueio de suas contas – e de seus pagamentos.

 

O Camera Prive é uma empresa do ramo da Tecnologia da Informação que inicialmente fornecia serviços de streaming, como a transmissão de aulas EAD. Hoje, é a maior empresa no ramo do camming da América Latina, contando com uma filial nos Estados Unidos.

O camming consiste de um serviço pago para relações online, sexuais ou não. A estrutura do Camera Prive é estratificada em salas e perfis, nas quais cada camgirl pode organizar sua própria coleção de fotos e vídeos — como nos perfis encontrados em redes sociais. Em cada perfil, as criadoras delineiam os serviços oferecidos durante os “bate-papos”, categorizados em formatos públicos ou privados/exclusivos. Após a interação, é possível atribuir uma classificação que varia de zero a cinco estrelas, além de escrever comentários.

A remuneração algorítmica funciona da seguinte forma: dentro do Camera Prive há uma tabela delineando faixas de preço para cada tipo de chat:  no chat padrão, caracterizado por conversas com vários clientes conectados simultaneamente, o valor é de R$ 1,20 a R$ 2,10 por minuto por usuário conectado. No chat privado, com interação apenas entre a criadora e o cliente, as tarifas variam de R$ 2,10 a R$ 3,00 por minuto.

No chat privado, existe a opção de um voyeur — um indivíduo que observa o diálogo privado sem a capacidade de intervir —, que paga uma taxa de R$ 1,20 a R$ 2,40 por minuto. E uma modalidade exclusiva, com interação apenas entre a criadora e o cliente, com taxas de R$ 2,70 a R$ 3,60 por minuto.

Outras modalidades foram introduzidas recentemente incluindo o Prive Call, que permite que clientes façam chamadas diretas para as criadoras mesmo que elas não estejam aparecendo na plataforma, a um custo de R$ 3,00 a R$ 4,20 por minuto, e o Prive Toy, pelo qual clientes operam remotamente um brinquedo sexual utilizado pela criadora durante a apresentação, custando entre R$ 0,60 e R$ 2,10 por minuto.

A remuneração das criadoras é estruturada de forma análoga à dos aplicativos de transporte e entrega: aproximadamente 30% a 50% de seus ganhos são destinados à empresa/plataforma e o restante é depositado às trabalhadoras.

‘Só hospedagem’

Um aspecto interessante: o termo “prostituição” é tratado nos termos de uso do Camera Prive como atividade ilegal. O que se oferece ali são duas categorias de serviços: hospedagem de conteúdo e facilitação de transações de pagamento entre criadoras e clientes. Consequentemente, afirmam serem as criadoras que contratam o serviço de “aluguel” da plataforma, e não o contrário – o que exige um procedimento de envio de documentos e validação de dados.

Ainda que os termos de uso procurem se distanciar da promoção de serviços sexuais, é notório que o camming tenha se estabelecido como uma modalidade de trabalho sexual mediada por plataforma. Pelos termos usados em seus contratos, o Camera Prive se distancia da possibilidade de ser enquadrado juridicamente como “cafetinagem digital” ou intermediação de serviços sexuais. A empresa busca, assim, distanciar sua atividade da exploração sexual ou de ser caracterizada como um ambiente de prostituição, conforme previsto nos artigos 229 e 230 do Código Penal.

Especificamente no contexto brasileiro, as plataformas, cientes da informalidade histórica associada ao trabalho sexual, implementam medidas e definições estratégicas para evitar qualquer reconhecimento como facilitadoras de um empreendimento informal e estigmatizado. Essa falta de regulamentação formal traz implicações não apenas para as pessoas que desempenham serviços sexuais.

Estigma e exploração do trabalho

A imposição do estigma social, das campanhas morais e da coerção pública culminam na terceirização das responsabilidades governamentais para entidades privadas. Como na empresa citada, a visibilidade das criadoras pode ser diminuída a qualquer momento e as alterações nos termos de uso passam a obrigá-las a se adequarem a condições de trabalho coercitivas — e a enfrentar condições financeiras cada vez mais voláteis.

As alterações nos termos de uso e contrato ocorridas no dia 2/9 ilustram esse cenário. De acordo com a criadora de conteúdo Karina [nome fictício], a plataforma costuma alterar seus termos de uso sem aviso ou negociação com as criadoras. E possui um histórico de divulgações não autorizadas de conteúdo/imagem das mesmas, além de atrasos no repasse dos ganhos.

Segundo a advogada Letícia Viana, que representa algumas dessas profissionais, o contrato vigente antes de 2/9 permitia a realização de transmissões simultâneas em outras plataformas, não previa exclusividade. E, caso uma modelo não concorde com as novas condições, a empresa não pode sancioná-la, já que impor mudanças unilaterais configuraria violação de contrato.

A tentativa de modificar os termos contratuais de forma unilateral, com sanções que visam forçar a aceitação, argumenta a advogada, caracteriza abuso de poder econômico. Conforme o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), práticas abusivas são proibidas e sujeitas a punição.

Para além do âmbito jurídico, o caso evidencia as complexidades do trabalho sexual digital. Embora o trabalho sexual não seja crime e seja reconhecido como profissão pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), ele continua a passar por transformações que aumentam sua precariedade e informalidade. Com a expansão do trabalho sexual, que pode ser realizado de forma híbrida (presencial e digital), muitas pessoas recorrem a essa atividade para complementar sua renda ou como fonte principal de sustento. Ainda assim, o estigma e o preconceito persistem nas relações de trabalho.

Vulnerabilidade e abuso

Ao se apresentar como uma prestadora de serviços às modelos, oferecendo espaço para o exercício de suas atividades, a empresa tenta redefinir a relação de trabalho, classificando as profissionais como autônomas e empreendedoras, num movimento semelhante ao que ocorre com trabalhadores de plataformas como iFood e Uber. No entanto, as exigências impostas pela empresa podem, em muitos casos, configurar uma relação de trabalho, ainda que não formalmente reconhecida como tal.

Temos uma classe trabalhadora diversa, marcada pela informalidade e pela precariedade, constantemente afetada pelo estigma que a acompanha, tanto pelo não reconhecimento formal da profissão quanto pelas brechas legais que isso gera. As plataformas se aproveitam dessa vulnerabilidade para submetê-la a contratos abusivos, jornadas de trabalho extenuantes, sem garantias de segurança ou dignidade, nem condições mínimas de trabalho adequadas.

Que medidas podem ser tomadas para assegurar os direitos dessas profissionais? Esse caso ilustra, de maneira concreta, a urgência de uma regulação específica para as plataformas digitais. Uma empresa privada não deve nem pode assumir um papel regulatório que direcione os rumos de um mercado que serve como principal fonte de renda para uma categoria profissional.

Carolina Bonomi é doutoranda em Ciências Sociais pelo Núcleo de Estudos de Gênero (PAGU) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com pesquisas em torno das transformações do trabalho sexual durante e pós Covid-19.

Cristiane de Melo é doutora em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFScar), com pesquisas em torno do fenômeno da plataformização, trabalho sexual, mídias digitais, gênero e sexualidade.

 

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