Como os fundamentalismos minam a autonomia feminina em pleno século 21

Os desafios de 2008

O debate sobre o direito ao abortamento seguro no Brasil e em diversos países da América Latina está intimamente ligado aos fundamentalismos religiosos e políticos. O problema começa quando crenças e valores de uma única religião passam a vigorar como regra geral para toda a população, composta por pessoas de diferentes crenças e por aquelas sem qualquer fé religiosa. Outro problema é quando preceitos religiosos orientam a criação de leis, políticas públicas e programas sociais de um Estado, constitucionalmente laico. Quando igrejas hegemônicas influenciam o Estado, o princípio da laicidade é desrespeitado e passamos a viver sob um regime de fundamentalismo religioso.

Historicamente, esses grupos conservadores foram associados à direita política. No entanto, observa-se que governos e partidos de esquerda tentam negociar direitos conquistados pelas mulheres - em especial o direito ao aborto legal - em nome de seus próprios interesses e alianças políticas. Além disso, tentam proibir a anticoncepção de emergência, camisinha, educação sexual, prevenção da epidemia HIV/AIDS. Ou seja: todo fundamentalismo religioso é também político e isso ficou explícito durante todo o ano de 2008, como podemos relembrar. Os fundamentalismos produzem uma verdadeira guerra contra a autonomia sexual e reprodutiva das mulheres, tentando retirar direitos conquistados e impedir o avanço de novos direitos.

Na Câmara dos Deputados, por exemplo, os fundamentalismos polarizaram o debate sobre a descriminalização do aborto tanto na Comissão de Seguridade Social e Família, como na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, comissões temáticas pelas quais o PL 1.135/1991 (que descriminaliza o aborto no Brasil) foi votado e rejeitado. Seus respectivos relatores, os deputados Jorge Tadeu Mudalen (DEM/SP) e Eduardo Cunha (PMDB/RJ) citaram trechos da bíblia em seus pareceres e nos perguntamos se de fato os princípios de justiça, cidadania e constitucionalidade foram os marcos tomados para tal rejeição. No âmbito dos legislativos e executivos locais, o quadro se repetiu. A Lei Municipal 7.025/08, do vereador Cláudio Miranda (ex- PSOL e hoje sem partido) e sancionada pelo prefeito Ary Fossen (PSDB), proibiu a distribuição da pílula do dia seguinte nos hospitais de Jundiaí, SP, sob o equivocado argumento de que ela é abortiva. No Rio de Janeiro, o recém eleito prefeito Eduardo Paes (PMDB), prometeu ao arcebispo do Rio, cardeal Dom Eusébio Scheid, implantar o ensino religioso nas escolas municipais.

Além de leis e políticas que ignoram a laicidade do Estado brasileiro, 2008 também foi marcado pela intensa perseguição às mulheres. Exemplo maior foi o processo envolvendo inicialmente quase 10 mil mulheres em Campo Grande (MS), pela suposta prática de aborto. O episódio se repetiu em municípios como Limeira (SP) e Porto Alegre (RS). Essa difícil decisão na vida de muitas mulheres ainda é confundida com caso de polícia e a criminalização só vem reforçando a desigualdade e a discriminação, deixando graves seqüelas, humilhando, prendendo ou matando muitas mulheres.

Diferente do Brasil, em que o aborto é tratado como caso de polícia, há outros países tratando a reprodução humana e o planejamento familiar no marco dos direitos sexuais e reprodutivos. No Uruguai, onde há uma cultura de laicidade muito mais consolidada, as mulheres optam por ter ou não ter filh@s ao invés de aceitar que padres, pastores, companheiros, amantes, namorados, pais, deputados, senadores, ministros digam qual a melhor decisão para elas. No início de novembro, o Congresso Uruguaio decidiu que o aborto poderia acontecer legalmente até a 12ª semana de gestação. No entanto, dois dias depois, o presidente Tabaré Vásquez, relacionado à esquerda progressista, vetou a decisão dos parlamentares, numa demonstração de autoritarismo, que significou um retrocesso à democracia do país. Houve uma grande manifestação no dia 14/11, que envolveu muitas pessoas e organizações da sociedade civil que defendem a democracia e os direitos humanos.

Levando o debate adiante

Nos dias 24 e 25 de setembro, ocorreu em São Paulo o seminário "Estratégias Latino-Americanas pela legalização do aborto e autonomia reprodutiva das mulheres", organizado e promovido pelo CFEMEA juntamente com outras organizações e redes, como SOS Corpo, IPAS Brasil, AMB etc. Experiências do Peru, Uruguai e Nicarágua inspiraram as feministas brasileiras com novas estratégias e linhas argumentativas. Logo após o seminário, como parte da programação do Dia 28 de setembro (dia pela descriminalização do aborto na América Latina e Caribe), um grande ato público nas ruas paulistanas marcou o lançamento da Frente Nacional pelo Fim da Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto. Mais de 600 pessoas passaram pelo Ministério Público e o Tribunal de Justiça, onde o manifesto da Frente foi entregue.

Nos dias 9 e 10 de outubro houve uma reunião do Conselho Nacional de Saúde, para a qual o atual presidente da Comissão de Seguridade Social e Família, deputado Jofran Frejat (PR/DF), foi convidado. A pauta principal era discutir com o deputado sobre alguns projetos de lei, que tramitam naquela comissão, propondo retroceder direitos sexuais e reprodutivos já conquistados pelas mulheres. No entanto, o deputado não compareceu. À exceção da CNBB, todas as organizações presentes (tais como UNE, CNI, CFM, dentre outras) foram unânimes em rechaçar essas propostas. Foi aprovada uma moção de repúdio à ausência do deputado e de rechaço às proposições retrógradas (dentre as quais, o PL que institui a bolsa-estupro, o cadastro obrigatório das gestantes, que transforma o aborto em crime hediondo etc).

Atividades como o seminário e ato público em São Paulo, a Frente Ampla e a reunião no CNS, nos mostram que a população, quando informada das tentativas de retrocesso, se indigna e reage. Que em 2009 aumentemos nossa capacidade de denunciar parlamentares e autoridades que insistem em ignorar os diretos conquistados e se negam a colaborar na conquista de novos direitos para as mulheres. Só assim poderemos consolidar nossa recente e ameaçada democracia.


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